quarta-feira, 19 de maio de 2010

A Balada da Exploração no Século XVI

Aqui na Europa eu desfruto de uma mobilidade gigante e sem precedentes, por conta de 3 coisas: meu passaporte italiano, meus vários amigos que se formaram e vieram morar aqui (e que me acomodam em suas respectivas casas de braços abertos, muito obrigada, amo vocês) e as passagens barataspracaralho da RyanAir/ National Express/ Megabus & train/ Eurolines. É claro que isso é maravilhoso e que tenho muitas coisas boas e otimistas pra contar. Mas hoje eu gostaria de escrever sobre as coisas erradas que eu vejo enquanto desfruto dessa mobilidade.

Além da minha pátria amada que agora é a Inglaterra, eu já fui para a Itália, Alemanha, Suíça, Espanha, França e Bélgica, e estou com uma viagem marcada para a Ucrânia. Tirando o último país, todos os outros são impecáveis em suas estruturas físicas. Políticas talvez nem tanto, porque a Itália está no meio da lista e porque a Bélgica, a Espanha e a Inglaterra são, ainda que não na prática, monarquias. Sobre o social, muito ainda tem que ser discutido e arrumado em questões de imigração e consequente exclusão desses imigrantes (que contribuem absurdamente para a economia européia, mas que são vistos meramente como intrusos). Mas com relação aos europeus, todos têm padrões de vida altíssimos, o que não precisa ser dito. E acho que podemos considerar que para a população da Europa Ocidental, imigrantes inclusos, não há o que para nós “terceiro mundistas” se classifica como pobreza.

Isso me faz pensar sobre injustiças históricas que eu descobri que muitos dos europeus não reconhecem, em específico a da colonização nas Américas. Ninguém aqui tem nem idéia de que, um dia, espanhóis, portugueses e ingleses (entre outras nacionalidades) vieram para a América para explorar riquezas e levá-las para suas respectivas terras. Ninguém sabe que essa ótima estrutura européia foi possibilitada também por isso. Ninguém tem nem idéia de por que, nas Américas todas, só falamos línguas européias. Ninguém entende quando eu falo que uma parte muito grande da população brasileira são descendentes indiretos de europeus.

Pois bem, eu sempre explico para aqueles que não sabem: “a história toda das Américas é muito parecida: um dia, europeus vieram para lá e mataram a população nativa, e levaram riquezas. O motivo pelo qual os Estados Unidos hoje são o que são é porque foram colonizados principalmente por uma nação industrial e emancipada intelectualmente”. (E um comentariozinho: o Canclini, no livro “Culturas Híbridas”, chama a Espanha e Portugal do século XVI de “the most backward european nations”. Me caguei de rir quando li aquilo).

Isso eu acho muito foda. Todo mundo reconhece as injustiças da segunda onda de colonização, na África e em parte da Ásia, mas da primeira ninguém sabe (eu imagino que o motivo seja a época em que elas aconteceram). A riqueza da Europa é constituída em certa parte (não sei avaliar quanto) pela exploração intensa dos recursos e da população indígena da América. E ninguém fala disso. Isso me dá nos nervos. Se algum dia eu possuir alguma importância midiática como musicista, vou compor a “balada da exploração no século XVI”.

Outra coisa: viajar por aqui evidencia de um jeito escancarado como as riquezas são distribuídas de forma desigual atualmente. Sei que parece besteira bater nessa tecla, mas eu sinto isso muito forte vendo as coisas de perto, e comparando com o que eu sei da situação social e política do Brasil. Chega a doer no ser. Tanta gente vivendo bem aqui e muito mais da metade da nossa população se fodendo e sendo xingada de burra pela classe média por não ter tido acesso a um ensino decente. (Claro que isso acontece também por causa da corrupção e outros fatores no Brasil, né).

Antes de terminar o texto, eu quero deixar bem claro que não culpo a população européia por essas injustiças das quais estou falando. Eles não são de forma alguma responsáveis por coisas bizarras que aconteceram no passado. Aliás, eu conheci pessoas muito interessantes até agora, com quem tenho discussões relevantes e enriquecedoras sobre política e história.

Agora sim terminando, preciso confessar que não sei o que fazer diante desses sentimentos de injustiça. Che Guevara fez uma revolução, mas eu sou só a Cioffi, uma estudante qualquer de mestrado que viaja pela Europa depois que se forma (isso sem contar que eu não acredito em socialismo, depois de tudo que aconteceu no século passado). Acho que a única coisa que me resta mesmo é escrever a minha “Balada da Exploração no Século XVI” - no estilo mais Raul Seixas possível - e continuar meus estudos conservando esse sentimento. Quem sabe algo bom não saia daí.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Encaixotando Salinger

Quanto mais leio os livros do Salinger, mais ele vai tomando o posto de meu escritor preferido. Quer dizer, até certo ponto. Difícil competir com autores com vários livros bons publicados, já que o Salinger era um recluso incurável e produziu pouquíssimas obras em vida. Não que ele não tenha escrito bastante, mas é que o próprio declarou uma vez que escreve pelo prazer de escrever, e não pelo sucesso comercial. Então ele deve ter um montão de coisas escondidas em casa. Tomara que alguém algum dia seja covarde o suficiente pra juntar tudo o que estiver escondido pelas gavetas ou debaixo dos colchões e publique, mesmo sendo um puta ato antiético.

Tive contato com ele há pouquíssimo tempo. Emprestei "O Apanhador no Campo de Centeio" há pouco mais de um mês e li em uma sentada. Sempre tive uma espécie de desprezo por esse livro, porque o boato que corre por aí é que é um livro para adolescentes rebeldes. Pura besteira. E besteira também também o que as más línguas dizem, que é um livro para serial killers. Tudo bem que o assassino do John Lennon, Mark Chapman, disse que se inspirou na história para cometar tal filhadaputice. Mesmo assim, what the fuck. Ele poderia ter dito que tinha acabado de ler Crepúsculo ou a Bíblia, dá no mesmo. Também dizem que o Apanhador "criou" a adolescência. Meu cu. Ele fala direto aos adolescentes, sim, tem tudo a ver. Mas dizer que a adolescência como tal - e não como uma simples transição da infância para a vida adulta - só começou a existir depois do livro, bem, já é um pouco demais, né?

Enfim. Li esse livro e fiquei realmente encantada pela maneira seca e ao mesmo tempo doce do Salinger. Passei pra um livro daqueles de bolso, que reúne "Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira" e "Seymour, uma apresentação", dois contos (?) que tratam sobre o mesmo tema: Seymour, o irmão mais velho da família Glass, que aparece na maioria das histórias do Salinger.

O narrador é Buddy Glass, irmão mais novo de Seymour, que escreve os dois contos (mais uma vez tenho que colocar aqui o interrogação. Não julgo que essas histórias sejam necessariamente contos, mas me faltam palavras para descrever melhor) depois que o personagem principal se suicida, em 1948. Dizem que Buddy é o alter ego de Salinger. O primeiro texto é sobre o casamento de Seymour, em 1942, em que o noivo simplesmente não apareceu. O segundo, uma dissertação bem longa sobre o sujeito e a sua "vidência" - cabe explicar: Seymour, em inglês, pronuncia-se "see more", isto é, "ver mais".

É impossível não se encantar com a maneira com que Buddy escreve. Ele é, na verdade, um grande filho da puta. Mora em uma casinha no meio do mato, quase não fala com ninguém, tem um grande desprezo por quase todo mundo, menos os integrantes de sua numerosa família (são, ao todo, sete irmãos). Super me identifico com essa maneira dele de ver o mundo: tudo é um saco, um porre, ninguém entende nada. O que importa, verdadeiramente, são as nossas paixões, o que realmente mexe com a gente de um jeito quase não-intencional. Mesmo assim, ele nutre um amor imenso por todo mundo. Se sente só e incompreendido, mas ama até as pessoas mais babacas. Tal qual Holden, personagem principal do "Apanhador". Isso é o que eu interpreto, então não venham me taxar de não ter entendido patavinas das obras. Cadum, cadum.

Sinto que escreveria livros idênticos sobre meus irmãos ou sobre mim mesma. Pra ser bem sincera, eu não sei porque Salinger é tão bom. Ele não é inovador na sua escrita e nem nada do tipo. Ao contrário disso, ele é totalmente simples, sem vaidades. Não sou nenhuma crítica literária, mas penso que é talvez pelo fato de ele escrever pra si, de amar escrever. Tanto que, no começo do "Carpinteiros...", ele diz que se alguém ainda nesse mundo leia somente por prazer (ou acidente), então que divida a dedicatória do livro em quatro partes iguais, junto com a sua mulher e seus dois filhos.

Eu sou bem louca e vou grifando nos livros todas as partes que eu gosto. Mas tem uma que é especial:

"Se e quando eu começar a ter consultas com um analista, espero ardentemente que ele tenha o bom senso de convidar um dermatologista para participar das sessões. Um especialista em mãos. Tenho cicatrizes nas mãos por haver tocado em certas pessoas. Uma vez, no parque, quando a Franny ainda era levada para lá no carrinho de bebê, passei a mão, por tempo demais, na penugem que cobria a cabeça dela. A outra vez aconteceu no cinema da rua 77, quando eu assistia com Zooey a um filme de horror. Ele tinha uns seis ou sete anos, e se enfiou embaixo da poltrona para não ver uma cena assustadora. Pus a mão na cabeça dele. Certas cabeças, certas cores e texturas de cabelo humano deixam marcas permanentes em mim. Outras coisas também. A Charlotte um dia se afastou correndo ao sairmos do estúdio, e eu agarrei seu vestido para fazê-la parar, para mantê-la perto de mim. Um vestido de algodão amarelo que eu adorava por ser comprido demais pra ela. Ainda tenho uma mancha amarelo-limão na palma da mão direita. Ah, meu Deus, se há algum termo clínico que me sirva, sou uma espécie de paranóico ao contrário. Suspeito que as pessoas estejam sempre conspirando para me fazer feliz".
Esse trecho é do diário do Seymour, que nem aparece fisicamente no texto do "Carpinteiros (...)". Me encanta que ele tenha faltado ao próprio casamento por sentir-se feliz demais para casar.

E, é claro, tenho profundo agrado pelo trecho do "Apanhador (...)" em que Holden explica à irmã menor o que ele realmente gostaria de fazer na vida, mais que qualquer outra coisa:
"Fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num baita campo de centeio e tudo. Milhares de garotinhos, e ninguém por perto – quer dizer, ninguém grande – a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o quê que eu tenho de fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer. Sei que é maluquice”.
Não acho que é maluquice, não.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Jornalismo facínora

Há aquele jornalista beberrão, de “O homem que matou o facínora”, western de John Ford, que ilustra o fato. Cito de memória: “Não sou um político, sou um jornalista. Eu faço os políticos. Eu os endeuso e depois eu os destruo. É disso que eu vivo”.

Se essa forma de pensamento entre jornalistas não é novidade nenhuma para qualquer olhar menos sonolento sobre os cadernos de política, aparentemente em alguns casos (mais raros do que gostaríamos, é fato), ela é inócua. Lula é um deles.

Em sete anos e meio os jornalões nacionais fizeram de tudo e mais um pouco para derrubar um presidente operário. Achincalharam Lula, achincalharam seus modos, xingaram-no de alcoólatra, de censor e de estuprador frustrado (ó, Pai, a que ponto chegamos?); inventaram a possibilidade de um terceiro mandato e nunca deram tanto espaço para um ex-presidente avacalhar um atual mandatário quanto deram para o senil Fernando Henrique (vários outros notórios fracassos de governo pelo menos tiveram a decência de sair de cena após os mandatos). E isso só para citar alguns casos mais crassos. Mas, ao que tudo indica, espernearam entre surdos e Lula deve encerrar seu segundo mandato com um índice de popularidade que, de tão alto, chega a ser quase inadmissível.

(Deve ter sido algo parecido que, por ocasião da reeleição de Lula, reza a lenda, levou um dos barões da mídia, numa reunião a portas fechadas, a sapatear de um lado a outro perguntando: “Onde foi que nós erramos?”)

Quando o conteúdo da mídia é tão abruptamente diferente da “febre social” há de se desconfiar que algum caroço esse angu tem.

Não se pode negar as falhas do governo nesses quase oito anos, e a própria projeção internacional brasileira (um de seus méritos) atesta que Lula foi bem diferente do que indicava em 1989, quando era um modelo recém-saído da fábrica. Sem falar que a crítica ao poder estabelecido, sem dúvida, agrega algo bastante saudável para qualquer democracia.

Mas as invariáveis e brutais críticas à Lula (incluindo aí a invenção de factóides que não renderiam nem notas de rodapé, mas que por vezes e vezes ocuparam a primeira página dias seguidos), parecem fazer parte de um recalque profundo, como se a mídia passasse a ser um mecanismo de vingança social contra um ex-retirante e operário que, com uma obstinação às raias da bíblica, ousou chegar à Presidência da República.

Sem dúvida, algo que não estava no script. Vejam só, o horror dos horrores para a classe média nacional, um presidente que não sabe falar inglês. Onde já se viu? Um nordestino, um metalúrgico aleijado em um torno mecânico, praticamente um arremedo de gente se comparado a FHC, o herdeiro das altas castas da sociologia.

Naturalmente (para eles), a elite e os jornalões sentaram e esperaram que Lula enfiasse os pés pelas mãos sozinho, mas afinal precisaram assistir apopléticos a um operário comandando um governo que, se não foi perfeito, foi sim bastante satisfatório.

Agora, em ano eleitoral, sabemos, acontecerá tudo o que Deus quiser e o Diabo permita na vida pública nacional. Se nos basearmos no que a Folha fez quando apresentou a ficha falsa de “terrorista” de Dilma, não é exagero dizer que crimes serão cometidos a propósito de barrar a sucessora de Lula. Resta-nos, a princípio, duvidar de tudo e todos, como mandava a velha máxima dos pistoleiros do oeste.

Que venha, então, a histeria.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Pois que a vida anda corrida e a gente tudo atropelado. Mas rolou essa coisa gostosa de trazer isso aqui de volta à vida, então cá estou eu. Um texto de 2008, mas uma excitação bem atual.

Iasa Monique, 2007



- Queria entender um pouco do mundo, ele disse enquanto passava o café. A velha riu. Achava
engraçado, quase não podia entender como é que um homem naquela idade, de barba branca e cabelos ralos, de marcas fundas cravadas no rosto, poderia ainda querer alguma coisa. Quis lembrá-lo da doença, da tremedeira, dos calafrios de todas as noites, passadas com dificuldade na cama de madeira, que fazia tanto barulho estalando com o frio quanto o velho fazia quando respirava – não conseguiu. Ao invés disso, passou com pressa a seu lado, batendo atrapalhada a leiteira na travessa de pães.
- Como está sua perna? Hoje vai fazer frio.
- Queria entender só um pouquinho. Pensei já muito sobre isso. Formulei hipóteses, você sabe?
A velha olhava mas não ouvia.
- Fico pensando que tanta coincidência não pode ser só brincadeira. Sempre achei interessante a construção das pirâmides. Foram botadas lá, certinhas, equilibradas. Disseram uma vez que numa dessas pirâmides havia uma escada. E essa escada levava ao desenvolvimento espiritual.
- Hum...
- E disseram também que houve um judeu, ou egípcio, ou alguém, mas era um homem, eu sei que era um homem, que subiu essa escada.
- E o que aconteceu?
- Faz quanto tempo que você leu a Bíblia?
- Você bem sabe que leio toda noite, depois do banho.
- Pois então deve ter lido que houve uma época em que Jesus desapareceu.
A velha riu outra vez. De repente, franziu o cenho.
- Ah, não vá me dizer que você está comendo o miolo do pão outra vez! Meu Deus do céu. Olha o colesterol, eu já cansei de falar.
O velho riu com dentes de plástico.

A maioria das tardes eram passadas à mercê dos pequenos vizinhos. O velho mantinha um certo agrado: por vezes, fruta. Outras vezes, pão. Os sabiás, agradecidos, montavam ninhos cada vez mais próximos à porta, que era amiga também. Nunca havia ouvido um só grito dos velhos, não haviam batido-lhe as fechaduras, a água da chuva que corroía seu cerne era sugada com carinho pelas mãos enrugadas da velha.
A velha não amava ninguém.
Nem mesmo o velho, que falava tão doce e tão sonhador. Mas não era má com ele, muito pelo contrário. Cuidava-lhe das feridas, agendava-lhe medicamentos, preparava um bom almoço, porque quando se está velho o ápice do dia se resume a degustar uma galinha bem cozida. A velha entendia do velho; o velho entendia da vida.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Diários do Festival de Jazz #2 ou Comemorando 10 anos de tendinite e disfunção social

No meu último post, falei que iria escrever mais sobre os britânicos para depois falar sobre o Jazz no Festival. Mas no que diz respeito a textos, a ordem dos fatores altera sim o produto. E justamente para que o produto não seja alguém reclamando “porra Cioffi, só sabe falar da Inglaterra agora, que saco” , eu vou mudar de assunto. Pelo menos por enquanto, porque tirar sarro de culturas diferentes da sua é sempre muito divertido.

Durante o festival de Chelt’am (vide texto anterior para explicação da grafia), tive a oportunidade de conhecer grupos de Jazz massapracaralho (vide blog da Audi para explicação do termo) justamente no ano em que completo 10 anos de música. Por isso mesmo, muita coisa me passou pela cabeça sobre a escolha que fiz quando era adolescente, e também sobre como ela, sem querer, se tornou minha escolha profissional. Nesse percurso, eu pude ver um sonho-utópico-de-todo-adolescente passar por profundas transformações e se tornar uma coisa da qual hoje eu não tenho mais orgulho – mas da qual eu não posso e nem quero me livrar.

Quando eu tinha 13 anos, escutava Nirvana e Green Day. E também Red Hot Chili Peppers. E pra mim, esse negócio de tocar guitarra (que é muito mais glamouroso que baixo ou bateria, a cozinha que me desculpe) e de ter milhares de fãs histéricos me atraía como atráia quase todo adolescente. Foi esse o impulso que me levou a estudar violão. Ter uma banda de rock famosa. Claro que na época eu não via contradição alguma no fato de eu ser mulher, brasileira e ainda por cima curitibana. Juro que não vi obstáculo algum, juro.

Como com qualquer outra coisa que eu quero muito muito fazer, mergulhei de ponta no negócio. Aprendi as coisas básicas bem rápido, e em questão de 1 ano, todos os meus colegas me pediam para levar o violão para a escola. Eles sempre cantavam comigo quando eu puxava “Have you Ever Seen the Rain”, ou “Scar Tissue”. Vendo a minha evolução, meu professor de violão – o Daniel, que tinha ido do Rock’n’Roll para o “nacionalismo” (Oswald de Andrade falando) -, foi mudando minhas percepções musicais.

Quando eu percebi que já sabia todos os acordes das músicas que eu gostava, ele me apresentou Marcos e Paulo Sérgio Valle, Tom Jobim e também Toquinho. E mais pra frente, me apresentou o violão clássico, o choro, Guinga e Garoto. Foi mais ou menos aí que eu percebi que ninguém mais cantava comigo quando eu levava o violão pra escola. A única conclusão a qual eu consegui chegar na época era a de que eu não tocava mais tão bem assim.

Foi com essa impressão que eu, com 17 anos, toquei “Duas Contas”, do Garoto, na prova do vestibular. Depois do Garoto, veio a FAP. Lá, eu aprendi o que era Jazz e me apaixonei. Lá, eu aprendi que a música que eu fazia era só para outros músicos, e que era essa, na verdade, a razão da minha falta de popularidade na escola. Um pouco antes de lá, eu havia aprendido que o máximo de dinheiro que eu ganharia na vida daria para comprar um Palio laranja usado com a tinta descascando, no maior dos luxos. E um apartamentinho no centro daqueles que você tem quando mora na cidade com os amigos pra estudar. Isso me fez decidir também pelo jornalismo. Antes que você possa gritar alguma coisa rindo bem alto, eu também descobri mais tarde que jornalismo não era exatamente uma boa opção pra encher nem a barriga nem o bolso. Só que eu havia pegado um gosto pelo negócio de verdade. Fiquei com ele também.

Ok, o que fazer então com duas opções que não enchem a barriga? Largar uma e ficar com a outra? Pensei mesmo muitas vezes em largar o violão, que só me trouxe tendinite e alguns “ah, você é músico? Mas o que faz da vida?” pelo “nossa, jornalismo, que legal, queria ter feito também”. Só que eu não consegui. Aí veio a decisão perfeita: pegaria toda a teoria da comunicação que havia estudado, juntaria ela à música, e viraria acadêmica. Enquanto isso, teria todo o tempo do mundo para estudar meu instrumento.

“Ok Cioffi, e o que o Festival tem a ver com esse bando de coisa, vê se escreve direito”. Bem, além de ter pensado nessa trajetória toda enquanto via os músicos tocando, constatei que, mesmo meu futuro não tendo nada de bem sucedido nos termos da indústria musical – como eu, de um jeito ou de outro, sempre soube – , ele pode ser sim alguma coisa de que eu goste.

Veja bem: tínhamos Jamie Cullum e a orquestra da BBC de um lado, o lado dos famosos. Do outro lado, o dos marginais, tínhamos Farmers Market, Sid Peacock, Polar Bear. Ou ainda, uma lenda – e nesse caso, “lenda” pode coexistir harmoniosamente com “marginal” – igual o John Scofield. Eu não preciso dizer que fiquei com os marginais. Um bando de coisa que me fez quase chorar, ou rir um riso extasiado.

A orquestra da BBC, monumental, com seus arranjos bem penteados de músicas do Sinatra, me fez querer dormir. Jamie Cullum só me chamou a atenção quando me perguntou porque é que as cadeiras da frente não estavam sendo utilizadas. E pra completar o meu sentimento de marginalidade, quanto mais eu estudo a indústria musical no meu mestrado, mais eu constato cientificamente e dou bases teóricas para o fato de que serei marginal pela vida toda.

Eu não tenho nenhum orgulho disso, pra deixar bem claro. Não acho que eu seja melhor que todos os outros porque estudo esse tipo de música. Na verdade, eu tenho um certo receio e uma certa vergonha disso. Sei que eu nunca terei sucesso além do limitado “sucesso acadêmico” que eu possa talvez, um dia, conseguir. Sei que nunca possuirei o poder cultural que os músicos contratados pela indústria musical conseguem.

Mas todos os meus 10 anos de música se justificam quando eu lembro da cena: Sid Peacock no palco, bonachão, com um sotaque de lugar nenhum no seu inglês, fazendo piadas estranhas ao explicar suas músicas. Quando sua orquestra começa a tocar, o teatro pequeno simplesmente pára, pelo menos para mim. Arranjos fortes, quase atonais, contrapontos muito bem feitos entre os naipes. Algo que arranca uma parte do seu peito e a joga pra bem longe. Na minha cabeça, a certeza de que se eu morrer sem poder fazer o que ele fez com aquela orquestra, não morrerei satisfeita.

Pra comemorar essa uma década de tendinite, e me aproximar dos meus ideais Peacock que surgiram no Festival, fiz uma promessa. Ao completar 24 anos, estarei tocando improvisos legais na guitarra e terei escrito pelo menos 4 coisas minhas. Façam o favor de me cobrar isso ano que vem.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Ó nóis aqui de volta traveiz

Depois de tanto, tanto tempo, cá estamos nós de volta com o Diazepam. Vou dar uma de celebridade de segunda linha (pra não dizer quinta) e explicar o porquê do nosso sumiço. Não, nós não brigamos. Ainda somos todos amigos. Mas muita coisa aconteceu desde o último post, em janeiro do ano passado. Teve gente que se formou, teve gente que ficou pra trás (tipo eu), a Cioffi foi para a Inglaterra e agora é a nossa correspondente internacional, o Sandoval se embriagou algumas vezes e a coisa seguiu mais ou menos assim.

Há alguns dias, a Iasa corajosamente nos chamou para voltar a escrever aqui. Só pelo convite já deu pra sentir um certo clima de animação no ar, já que esse blog foi muito importante para todos nós, de alguma maneira. Ele foi fruto da noite mais bonita da vida, em que nos tormamos verdadeiramente amigos. Um projeto bem bacana, deixado às traças por conta de outras prioridades na época.

Fico feliz de voltar a abrir essa caixa do blogspot e escrever as asneiras da minha cabeça. Pensei bastante em algum texto para postar, algo mais profundo, criterioso e interessante, como a Cioffão já foi capaz de postar. Mas não consegui, não. Pra mim, o mais importante é que esse meu primeiro post seja uma forma de agradecimento por tudo que já passou e tudo que há por vir. Nem tanto as coisas que aconteceram aqui no blog, mas as da vida real, os meus amigos.

Todo mundo fica me enchendo porque estou muito piegas desde a formatura desse ano. Não adianta, não consigo parar de me emocionar ao pensar o tanto de coisas que nós já passamos juntos nesses quatro anos e meio de Jornalismo.

Então, desculpa, post de verdade só semana que vem. Agora, deixo só o meu apreço. E de uma maneira bem brega, tipo música da Pepê e Neném, que é o meu estilo.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Diários do Festival de Jazz #1

Há dois meses, recebi uns anúncios sobre vagas para trabalhar em um festival de Jazz em Cheltenham (que se pronuncia Chelt’am, e eu já reclamei para todos os ingleses que podia do grande desperdício de letras que é esse nome). O trabalho, apesar de voluntário, envolvia Jazz e festivais legais tipo os de Antonina, nos quais você conhece um monte de gente interessada nas mesmas coisas que você. Eu passei um bom tempo escrevendo meu CV e uma carta, que foram bastante convincentes e me garantiram uma entrevista por telefone. Também nela fui convincente – já havia antecipado todas as perguntas que me seriam feitas e escrevido as respostas antes de receber a ligação.

Esse processo árduo de inscrição para um trabalho voluntário me fez acreditar que esse festival devia ser bem importante mesmo. Herbie Hancock e Chick Corea já tocaram algumas vezes por lá, então sim, seria no mínimo interessante para mim. Eu escuto esses caras desde que o processo natural de jazzificação – que acontece com todo músico que estuda veementemente música popular – começou em mim, há aproximadamente 4 anos. Nessa época eu tocava standards na casa do Diego, com meu clarinete desafinado e meus improvisos que eu fazia usando no máximo duas notas por compasso, sem saber bem em que acorde estava. Essa sessão foi carinhosamente apelidada de Jazzeeeera (em homenagem ao querido sotaque catarinense do Diego) e durou até eles ficarem bons e eu empacar no caminho por ter começado a odiar o esforço respiratório que o clarinete me impunha. Enfim, a Jazzeeeera foi um passo importante no meu estudo, e o Jazz me acompanhará em tudo que farei nos próximos anos.

Mas voltando para o festival: chegando em Chelt’am (eu me oponho fervorosamente a escrever essas 3 letras que acabam com o entendimento dos fonemas do inglês que um cidadão normal tem), me deparei com um time literalmente completamente britânico. Na lista de nomes de pessoas trabalhando para o festival, o meu era o único que não comia salsichas com ovo frito no café da manhã, nem possuía um dispositivo contra incêndio que dispara pelo menos 3 vezes por mês e faz você sair de pijama de casa às 7 da manhã.

Por causa disso, a experiência que eu tive pode ser dividida em dois pontos principais: a música que eu ouvi, e a socialização intensa com britânicos que eu tive. Aqui em Liverpool, meus amigos são de várias partes da Europa, e quando a gente sai todo mundo junto tem no máximo 3 pessoas britânicas, e só. Socializar com um grupo predominantemente inglês era algo que eu não tinha feito ainda, e posso dizer que tenho várias coisas pra contar depois disso. Fiz constataçoes que até existiam antes, mas que se tornaram óbvias depois da semana de trabalho.

Vou então começar com essa experiência britânica, pra depois, no diário número 2 – ou 3, dependendo de quanta coisa sobre eles eu tenho pra dizer – falar sobre a música. Muito bem, vamos começar com as diferenças espaciais. Eu fui para uma cidade a duas horas e meia na direçao sul de Liverpool. Para um brasileiro, essa distância seria tipo ir pra praia no fim de semana, ou ir lá pegar um negócio muito importante que você esqueceu em casa no Sítio Cercado e depois voltar pro trabalho no centro. Mas aqui na Inglaterra, é uma distância enorme. As pessoas não só têm sotaques diferentes por causa dela, como também têm mais ou menos dinheiro e também cores de bochechas diferentes. O Norte é o operário caipira levemente rosa que parece um presuntinho, e o sul é o rico Sir Peter Gaylord com sotaque da BBC (que até parece um presuntinho também, mas um pouco mais apresentável). O Norte vota para o partido operário e o Sul para o conservador. (Só para constar, a pessoa com quem mais bebi e falei merda foi um cara do Norte que era zuado constantemente por todos os outros, que eram do Sul. Talvez tenha feito isso para inconscientemente contrariar minhas origens de classe média polida curitibana. Mas isso é uma coisa que eu acho que faço toda hora, independente de estar na Inglaterra ou não).

Outra britanicidade: informação. Dizer para as pessoas como chegar a algum lugar, para um inglês, é um ritual sério que envolve muitos estágios. A partir do momento em que você pergunta para um deles, “can you tell me the way to…”, você constatará as seguintes fases: 1) O posicionamento. Haverá um período de silêncio no qual o inglês virará de frente para a direção na qual você deverá caminhar. 2) O enrijecimento do corpo. O inglês irá adquirir uma postura firme e irá alinhar o braço solidamente com o seu caminho. 3) O uso de vocabulário próprio para informações. Nesse ponto você irá constatar quantas palavras a mais existem no inglês para ajudar alguém a chegar em algum lugar. 4) A confirmação. Ele olhará para você para ter a certeza de que deu uma informação precisa, e esperará um sorriso e um “thank you very much” acolhedor. Se você não fizer isso, ele ficará puto.

Falando em sorrisos e em coisas acolhedoras, ingleses sorriem muito, ao contrário do que se pensa. É como se eles substituissem muitas palavras por sorrisos. Não sei da veracidade deles, mas toda vez em que passava por alguém do time para o qual estava trabalhando, rolava um sorriso. Toda vez em que eles me pediam algo, e eu dizia “sure”, com uma cara feliz, eles respondiam com um “thank you” que mais parecia que estavam cantando (eu até cheguei a pensar numa melodia imitando esse thank you, mas não poderei mostrar agora para vocês por isso ser um texto e não uma partitura – embora alguns chatos semióticos possam ficar enchendo o saco por horas para provar que uma partitura é um texto). A impressão que ficou na minha cabeça é a de que a Inglaterra é uma grande mãe e um grande pai também, ambos gordos e felizes, que impõem regras, mas que fazem isso sorrindo bastante. E se você sorrir e fizer o que for pedido, você irá receber um abraço acolhedor, mas não literal, em retorno.

Estou chegando ao fim do diário 1 constatando que deverei escrever mais sobre eles no próximo diário. Fico por aqui com esse texto, para em seguida escrever mais sobre essa grande mãe gorda e rosada que é a Inglaterra.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

No fim, meu bem, a gente junta os cacos

Desorganização, pra mim, não é defeito. Talvez porque eu só funcione em modo de curto-circuito, uma peça que já saiu de fábrica inconsertavelmente defeituosa. Talvez porque eu só funcione quando não planejo, em cima da hora, e com aquele simpático diabinho soprando ao ouvido que “não vai dar tempo, não vai dar tempo”.

De forma ou outra, com ou sem álibi, não considero minha desorganização um defeito. Ser desorganizado é uma forma de ser organizado às avessas, um jeito de sair do marasmo, conectar idéias que de outra forma jamais estariam na mesma pasta. Desorganização também é uma forma de raciocinar, de olhar o mundo. Nem certa, nem errada; apenas organizada de maneira desordeira.

Jamais consegui ter uma estante de livros. “O apartamento é pequeno, não cabe mais nada”, desculpo-me comigo mesmo, a fim de aliviar a consciência. Fica tudo mais ou menos guardado, mais ou menos jogado, numa parte do guarda-roupa (guarda-roupa? Todos no aguardo do novo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, previsto pra fevereiro). Desesperadoramente empilhados, parecem saltimbancos prestes a cair. Claro, nada é catalogado, separado, organizado. Henry Miller convive com Dostoiévski, Norbert Elias com Maquiavel, Cristovão Tezza com Cortázar; João Ubaldo com Capote, Borges com Kerouac. Uma orgia! Uma temeridade! Nas proximidades, as camisas convivem com as camisetas, as calças com os calções, as cuecas com as meias; há baralhos, dinheiro esquecido pelos bolsos, moedas que se perdem para todo o sempre.

Como administrador, então, fracasso absolutamente. O dinheiro vem e o dinheiro vai sem que tenha tempo de pedir notícias do mercado financeiro. Cerveja na esquina, saquinhos de pipoca... Falta para a conta da internet, para as pendências com os amigos, para quitar a dívida com o pai. Tenho o excelente hábito de me recusar a fazer contas, cálculos financeiros. Vai sobrar mês, eu sei, mas quem se importa? Se eu parar agora também vai sobrar noite, confere? Que sobre o mês, ora pois!

Nem o computador, que deveria ajudar depravados como eu, salva-se. O disco rígido é mais desorganizado que puteiro de quinta e às vezes, apesar de meu ateísmo, levanto as mãos aos céus e agradeço ao deus todo-bondoso pelo “localizar”.

Não me pergunte quando vence a luz, quando é a prova. Eu não sei. Na vida, sou um neurocirurgião com mal de Parkinson, um bêbado desastrado numa loja de porcelanas. Vou esbarrando no mundo, derrubando a prataria. Então, olho para o balconista e pergunto, com o semblante um tanto besta:

- Dá pra colar?


PS.: O Diazepam naufraga, mas eu, que não sou capitão nem nada (talvez mais nada que qualquer outra coisa), insisto em ir junto.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Pátria minha

Voltei há exatamente uma semana para a minha terra de origem. São sete dias que me separam de algo completamente diferente, como se fosse uma outra vida que eu mantinha em Curitiba. Não sei explicar exatamente o que mudou. Só sei que os ares daqui me botam comovida como o diabo.
Cada pequeno detalhe, que antes me era tão familiar, agora é uma novidade. A primeira coisa que se nota ao chegar aqui é o bafo quente que bufa sem parar. Não dá sossego nem à noite, o que nos obriga a todos a dormir com o ventilador ligado no último. Tento me lembrar de como eu fazia para permanecer viva em outros tempos. Quando, por exemplo, eu era criança e tinha medo de dormir sem me cobrir com o lençol. Não sei como sobrevivi a tantas noites escaldantes e tive saúde suficiente para ir para a escola de manhã com aquele uniforme de poliéster. Ou então como eu conseguia sair por aí de bicicleta às três horas da tarde, ou brincar de handeball louco (a especialidade da garotada do bairro) naquela pracinha calçada com pedras que ferviam à luz do sol. Lembro até que a grama esturricada nas extremidades do nosso campinho serviam como marcação para as duas traves do gol; só faltava colocar alguns chinelos por cima para ficar mais claro para os jogadores afobados em marcar. Havia me esquecido de tudo isso, não por não sentir saudades, mas por puro e banal esquecimento, que não tem porquê, acontece, simplesmente.
Ontem fui para o bar com alguns amigos. Apesar de não haver esquecido, tampouco me lembrava com clareza de como é a noite mariliense. Não importa quantos bares têm na cidade: todo mundo vai para apenas um. Se você quer sair, tomar uma cerveja geladinha e não sabe para onde seus amigos vão, não há dúvidas: vá ao Chaplin. Ele é caro, não dá pra pedir nem uma porção de fritas, mas dá todo tipo de gente. Desde nós (o pessoal mais esculachado do noroeste paulista) até as meninas de cabelo amarelo alisado com chapinha e os meninos que usam regata para mostrar os braços e ganhar as meninas de chapinha. Bem, estava no bar e fazia calor. Havia algumas máquininhas, como postes, que jogavam vapor de água para refrescar a galera. Estávamos lá, suando, bebendo a autêntica Brahma agudense que não existe em nenhum outro lugar do mundo. E ela estava trincando... Isso me fez pensar. Esse pedaço de estado paulista é intrigante.
Marília é, sem dúvidas, uma cidade engraçada. Constrastando com o calor, o povo daqui não é aquilo que se pode chamar de acalorado. Alguns o são, mas a maioria tem ares de cidadãos de uma metrópole, como se isso os tornassem algo acima do bem e do mal. Bom, o que posso dizer é que Marília pode ser uma cidade relativamente grande, tendo em vista que possui quase 250 mil habitantes e é considerada a "capital nacional do alimento", como ostenta, orgulhosa, a plaqueta disposta na entrada da cidade. Mas não age como tal. Para mim, no máximo, é como um bom e grande feudo. O nosso senhor feudal, Dom Camarinha, excepcionalmente não é o atual prefeito, mas nem por isso manda menos. Afinal, o Bulgarelli (este sim, prefeito reeleito) é seu melhor laranja. Ops! Quis dizer amigo, foi mal. 
Camarinha tem visto seu poder diminuir desde o trágico e surpreendente caso da queima do jornal. Vivo contando essa história por aí, porque é muito divertida: camarada Camarinha era o dono do maior jornal de Marília, o Diário. Quer dizer, ele não era o dono, mas mandava de qualquer maneira, porque o editor-chefe, José Ursílio, também era o seu melhor laranja. Agora eu realmente quis dizer laranja. Por uma briga envolvendo dinheiro, intrigas e apelações judiciais, Camarinha e Ursílio se separaram. O jornal, então, faz denúncias escabrosas contra o político. Camarinha se vinga. Ninguém nunca pôde provar, mas é quase certo que ele contratou uma cambada de capangas (incopetentes, diga-se de passagem) para botar fogo na sede do jornal Diário e na rádio homônima. Esta era a sua demonstração de poder. Pouco tempo depois, um grupo de mascarados entra na casa de Camarinha, para um suposto assalto mal-sucedido, e matam seu filho. Rafael Camarinha, provavelmente o herdeiro do trono, foi morto. A história, claro, estava muito mal-contada. Quem sou para afirmar alguma coisa? Só sei que os dois acontecimentos são muito catastróficos para não serem relacionados. 
De qualquer maneira, nenhum desses fatos sequer foram realmente analisados. Uma cambada de outros laranjas foram para trás das grades, os peixes grandes continuam a nadar. Claro. Camarinha hoje é deputado federal. Seu filho mais velho, Vinícius, é deputado estadual. Os dois fazem parte do PSB - Partido Socialista Brasileiro. Hehe. Zé Ursílio ainda usa seu jornal para esculachar seu antigo parceiro. Ele ainda não sabe usar vírgulas e é monotemático. 
O mais engraçado de tudo foram as eleições deste ano. Quem concorreu à prefeitura: Bulgarelli (o laranja), Vinícius Camarinha (o filho) e José Ursílio (a oposição sem noção). Bulgarelli venceu. Mas o clima de piada ainda continua por aqui. Afinal, que outra cidade 'grande e desenvolvida' tem tantos crimes políticos dignos de um povoado dos anos 1800 quanto Marília? É triste. Digo isso porque eu amo isso aqui. Essa terra vermelha, quente, árida, poeirenta, esturricada, onde as mulheres se equilibram em seu salto alto e protegem os cabelos da fumaça, essa partezinha de território brasileiro com cheiro de bolacha em toda parte e com um povo que reclama do frio sempre que venta.
Bem, hoje é véspera de Natal, estou em casa, com minha família, me entupindo de panetone e esperando Papai Noel chegar. Estou imensamente apaixonada por toda essa vida diferente. Quer dizer, sei que me apaixono porque sei que a vou abandonar em poucos dias, para começar tudo de novo outra vez lá no Paraná. Não sou mais criança e o Natal já perdeu aquela magia que tinha antes. O que me comove, agora, é estar onde nasci, com as pessoas que estiveram comigo por toda a minha vida, e perceber que não me enjoei de todas estas tradições. Talvez essa seja a minha maneira de dizer Feliz Natal. Talvez seja só um jeito de falar sobre um jornal queimado e sobre um moço executado.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Crônica feia

Não me importo com o fato de ser feio. Não me importo com a magreza atávica e irremediável (passei a infância toda sendo obrigado a engolir intragáveis e torturantes tonificantes que de nada adiantaram), com os ossos dos cotovelos à mostra; nem com a altura excessiva, o que chega a me deixar divertido de tão desengonçado; não me importo com o rosto estranho, que parece cortado a machado. Aliás, como tudo é feio, o conjunto chega até a ter certa harmonia; fica suportável aos olhos. Por isso, vou mais longe, e procuro quase que obsessivamente esculhambar minha sintaxe física de vez. Daí os cabelos longos e indômitos de espantalho e a barba rala que (por teimosia e preguiça) deixo crescer, pra acabar ficando com aquela aparência de quem tomou o último banho há uma semana.

É um convicção política, isso de não se importar em ser feio – chega-se a gostar de ser feio. Ser feio é estar à esquerda do espectro; a beleza é a direita. A beleza não se rebela, não se insurge, não pega em armas; a beleza é conformista e conservadora. Nenhuma grande reforma foi iniciada pela beleza, pelos bem asseados. As revoluções são feitas pelos feitos, pelos infectos, pelos despojados e mulambentos. A fealdade é punk, é o sorriso podre de Johnny Rotten. A fealdade é vermelha. E se a história tem mesmo um fim, o fim é nosso (a bênção, seu Karl Marx). Os feios, ao fim, vencerão.

Vou além. Ninguém de olhar menos sonolento se importa com a beleza. A beleza não é curiosa, interessante; a beleza é estandarte, brasão. Curioso mesmo são as mulheres barbadas. Por isso o mundo da ciência se curva diante de nós, os feios; pesquisa a feiúra. A sociologia nos defende, nos protege. Os sociólogos se interessam pelo pobre, pelo carente, pelo déficit sanitário, pelo desorganizado, pelo outsider – em suma, pelo feio. Está cientificamente e quantitativamente comprovado nos anais das pesquisas antropológicas e sociológicas: ser feio é interessante. Ser bonito, não. O bonito já está resolvido, é equação sem incógnita, problema tediosamente solúvel, coisa chata, sem graça, besta de doer. Veja só: uma mulher excessivamente bonita vai ser só isso. Qual é a graça? A beleza, de fato, está em ficar procurando defeitinhos, encontrando-os e achando-os bonitos. Está aí uma coisa que as mulheres precisam entender: os homens também amam as feias; não raro acima de tudo amam as feias.

Por quê? Porque ser bonito é ser constitucional; ser bonito é estar de acordo com a legislação, seguir às leis à risca; ser bonito é bom-mocismo e bom-mocismo é chato.

Mais chato do que ser bonito, só ser feio e ficar tentando reformar a lataria, como se fosse carro velho. Não orna. Um Chevette 79 vai ser sempre um Chevette 79. É feio. Pode ser um feio vermelho, azul, amarelo... um feio burro-quando-foge; um feio com ou sem trio elétrico. Mas é feio. Feio é fim, não é meio; ponto final e não vírgula. Wander Wildner já canta, punk-brega e alcoolizado, que queria ser bonito, mas não consegue. É insensato. O máximo que se pode conseguir com algo feio é deixá-lo feio e espalhafatoso – o que, convenhamos, piora as coisas. São as atitudes drásticas. Pintar seu Chevette 79 de cor-de-rosa, por exemplo. Pronto: agora você que odiava ser feio continua feio - e ainda por cima não pode mais passar despercebido.

Mas não é só isso (nunca é só isso, oras). É preciso admitir a feiúra com convicção, e para isso é preciso transcender, exercitar os defeitos. Não só os defeitos físicos (um lóbulo da orelha maior que o outro, os mindinhos tortos das mãos), mas todos os defeitos. É preciso admitir ser fumante incurável, admitir o eterno mau humor matinal, gabar-se da própria falta de sofisticação... é preciso admitir que você marca os livros com suas respectivas orelhas (as deles, não as suas, leitor estúpido!) e, na falta delas, dobrando as páginas mesmo; ser feio convicto é não ter vergonha das orelhas-de-burro. É ter algumas virtudes (muitas, talvez), mas fazer questão mesmo de exercitar seus defeitos. Ouvi isso em algum lugar: as pessoas gostam umas das outras por suas qualidades, mas só amam umas às outras por seus defeitos. A virtude é genérica (é esteticamente resolvida, não estimula investigação), o defeito é singular, único.

E, no mais, se não fôssemos nós, os feios, como é que os pobres de espírito iriam admirar a beleza? Uma coisa não existe sem a outra. Pensar e catalogar (inclusive de belo ou feio) é abstrair, e o cérebro humano é incapaz de abstrair sem parâmetros de comparação. Os belos têm uma dívida para conosco. Assim, por si só, nossa fealdade é, para dizer o mínimo, perdoada. Fujamos das academias, das clínicas estéticas; admiremos nossa feiúra ao espelho. O mundo nos deve essa.

sábado, 13 de dezembro de 2008

sinceridade

gabriel garcía márquez escreveu, certa vez, que é preciso que se fale da humanidade, e é preciso que se fale do amor, porque um não é sem o outro. é sempre no caminho de volta pra casa, quando a cidade está vazia e escura, cheia de sombras esquecidas, de sonhos bons, de desalentos, ou de lágrimas corridas no escuro, que a vontade de escrever me vem visitar. do começo ao fim da viagem noturna, que tem apenas destino, mas não início, do começo ao fim do passeio por entre luzes e orvalho, esses breves instantes, mil anos talvez, traduzem-se em uma tortura excitada, uma enxurrada de palavras, de dores, de motivos inéditos, frescos, recém-paridos, prontos para chorar ou para rir, querendo que se explorem, que se curtam, se desfrutem, e eles invadem meus olhos e tudo que vejo é transformado em poesia, uma poesia negra e de ornamentos fortes, consistentes, agudos.
penso então que não escrevo há tempos, que nunca escrevi, que talvez nunca tenha escrito nada que realmente se valha a pena ler. penso que essa aura toda das coisas-que-dóem, dos furta-cores, dos úmidos entre as palavras permanecem todos aqui, trancafiados, andando de lado a lado como um pequenino demônio engaiolado, esperando apenas por uma brecha - uma fúria repentina e enlouquecida de todos os dedos, juntos - para se fazer mostrar. e penso em quão triste é uma vida engaiolada, uma vida que não consegue atingir a plenitude, nem sequer um mísero sucesso ocasional, mas que permanece tentando, sem glória nem reconhecimento, sem nunca atingir o primeiro lugar, mas insistente como uma mula pobre, como um murro rubro em ponta de faca.
então lembro de priscilla, que me disse - sem querer e sem rodeios - que escrevo como quem come. "todo dia, o mesmo cinza". clarice disse que o que se escreve de verdade nunca está nas palavras, mas sim nas entrelinhas. revirei minhas entrelinhas de cinco ou sete anos atrás, desde o primeiro drummond, e só me vi sangrando em cores, disfarçando sob o arco íris um doer que nunca tive certeza do nome, da ocupação, do endereço. nunca o critiquei, nunca o julguei, nunca quis que não existisse. tenho para o doer uma espécie de idolatria abusada, uma idolatria que me abre espaço para que eu o explore, o force a me oferecer coisas que não tenho, que nunca teria, e que o ponha contra a parede e o seque até definhar, e então esse doer morre, sem muitos lamentos, e outro me nasce, novo, mais forte, melhorado, como as coisas da vida costumam ser quando o processo é natural, e eu o acolho de bom grado mesmo que me dilacere, que me consuma, que me mate aos poucos, porque mesmo se não der certo, meu coração é esperto, não vai parar de bater. (apóio tamanho egoísmo no conhecimento popular que diz que só se fala com sabedoria sobre o que conhecemos com propriedade, e nesse mundo não conheço de nada que não seja eu mesma, e, ainda assim, muito pouco - mas não que me envergonhe, porque não conhecer das outras coisas do mundo me impede de tomar conclusões absolutas, me proíbe de dar tudo por conhecido, me condena qualquer julgamento, e permaneço frente a tudo sempre com o olhar de criança curiosa que não entende nada que vê e que, por isso mesmo, tudo lhe parece belo).
também meu pai me disse, em ainda outra ocasião, entre uns acordes de noel e outros de cartola, que de nada adianta cercar os certos e os errados, os justos e os injustos, que de nada adianta esfaquear com olhos e palavras as coisas mutantes e escusas, porque acima de tudo, acima das palavras de clarice, o que se fala é sempre sobre o curso. e o curso é um puto: segue por onde lhe convier, e desdenha em alma de todo o resto das coisas.

Inspiração ou 'O Crepúsculo Japonês'


Trecho do livro O País das Neves de Yasunari Kawabata, (1889, 1972), prêmio Nobel de Literatura de 1968


"(...)


No fundo do espelho, corria a paisagem do entardecer, isto é, o que se via através do vidro e o que se refletia no espelho moviam-se como imagens sobrepostas de um filme. Os personagens e o cenário não tinham nenhuma relação entre si. Além disso, sendo eles de uma fugacidade translúcida, e a paisagem de uma fluidez vaga de cair de tarde, a fusão de ambos desenhava um mundo simbólico. Particularmente, quando os últimos raios de sol da mata iluminaram em cheio o rosto da moça, Shimamura chegou a sentir o coração palpitar diante daquela beleza inexprímivel.


O céu das montanhas mais distantes ainda guardava os resquícios da vermelhidão do pôr-do-sol. Por isso, bem ao longe, os contornos da paisagem através do vidro da janela ainda continuavam nítidos, mas já sem cor, e as montanhas infinitamente monótonas pareciam ainda mais triviais. Por não haver nada de mais atraente, tudo aquilo tornava-se um imenso fluxo de emoção anuviada, obviamente porque ele imaginava o rosto da moça flutuando nesse quadro. Não era possíovel ver o ooutro lado da janela na parte em que a figura dela se refletia, mas como a paisagem do entardecer se movia ao redor do controno da moça, o rosto dela também lhe parecia translúcido. Se era ou não, ele não foi capaz de distinguir, pois lhe parecia que a paisagem do crepúsculo que continuava a pasar por trás do se rosto e estava em frente a ele.


Como o interior do trem nao era muito claro, aquele espelho não era tão nítido quanto deveria ser. Ele não refletia bem as imagens. Por isso, enquanto Shimamura olhava compenetrado, foi se esquecendo da existência do espelho e começou a pensar que a moça flutuava na paisagem do entardecer."


Foi nesse momento que os raios de sol, já tênues, iluminaram o rosto dela. O reflexo do espelho não era suficiente para apagar a claridade de fora, nem esta, forte o bastante para ofuscar a imagem refletida no espelho. A claridade passava como um relâmpago pelo seu rosto, mas não era suficiente para iluminá-lo. A luz era fria e distante. No momento em que o contorno de sua pequena pupila foi se iluminando, como se os olhos da moça e a luz se sobrepusessem, seus olhos se tornaram um vaga-lume misterioso e belo que pairava entre as ondas da penumbra do cair da tarde


(...).

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Vou te dizer o que penso essa noite. Quero te dizer o quanto é legal quando as coisas fazem sentido o máximo possível, como é legal entender a natureza, e as pessoas, e Deus se ele existe, mas como é legal da mesma maneira ter um botão que desligue todo esse sentido e que nos mergulhe num poço de dúvida e insegurança, porque é isso que faz do humano humano afinal, mas não sei se você entenderia, então te levaria para o meio da grama, não o meio propriamente dito, pois levaria muito tempo a calcular isso e a noite é muito curta para perder tempo com essas bobagens matemáticas, então te deitaria lá por algum meio da grama e te faria olhar as estrelas e saber da nossa posição em relação aos firmamentos, isso é claro se os firmamentos assim, com essa robustez vocabular firme, forte e magnânima te trouxerem alguma segurança, mas se não trouxerem não é de todo ruim, já que daria a você a noção de como a incerteza torna o humano humano, mas isso já falei, embora a redundância possa te fazer entender melhor, mas não sei exatamente se você entenderia, pois você não é de entender muita coisa, você só é de ficar falando de relacionamentos amorosos ou não tão amorosos, a verdade é que isso enche o saco às vezes, desculpe se fui muito incisivo mas é que falo para não perder esse meu bem querer por você, e você sabe que eu bem te quero muito, assim como bem quero todo mundo, talvez não todo mundo mas a maioria das pessoas, até as chatas, mas a verdade, de novo, sempre ela, é que você é um tanto quanto ininteligível às vezes, fala de muita coisa a toda hora, mas nenhuma eu consigo entender plenamente, com exceção de quando você fala de relacionamentos, que é a parte que eu entendo, porque não há muita coisa que não dê pra entender, está claro tanto para mim quanto para qualquer um que venha a se aventurar em seus fluxos neurais, pois teus olhos imperfeitos, olhos de cigana oblíqua e dissimulada, diria um, e repetiriam milhões de bocas, cara de puta, retrucaria outro, a verdade, olha de novo ela, é que seus olhos não passam de uma seqüela do que o passado fez com você, pobrezinha, te disseram que te amavam e depois disseram que amavam outra pessoa, ora, isso não é coisa que se faça pois amar é uma palavra muito forte, e não pode ser jogada aos quatro ventos, mas sim reservada a pessoas especiais, e cá entre nós, você poderia ser uma pessoa muito especial, mas hoje já não é, Deus do céu, o que fizeram com você que hoje poderia ser especial e não é, vai morrer só isso, mas existiria alguém para pegar tua mão e dizer que te amam verdadeiramente, e você não repudiar esse romantismo repentino como uma forma de defesa dos teus sofrimentos passados, e que se tornam presentes com certa freqüência, mas sim apegar-se não só de corpo como bem faz, e como faz bem, mas também de alma, como diriam um e repetiriam mais outro milhão de bocas num clichê gigantesco, mas que só se tornou esse clichê gigantesco bem sabes porque, ou não sabes já que não entende de muita coisa a não ser de relacionamentos carnais, coisa que, já falei, você é especialista, esse clichê gigantesco, retornemos ao meu fluxo neural inclassificável, me perdoe deixar você à sujeição de absorver toda essa trilha psicológica, mas se você chegou até aqui é porque talvez esteja gostando, e se está gostando vou continuar, mas mesmo que demore páginas, e não dê pra classificar isso em alguma coisa, pois não sei se é crônica conto ou rompante confessional, desculpem, desculpem todos, desculpe mundo, não classifico o que digo, sou um idiota, mas voltando dessas bobagens de classificar, a dizer todas essas coisas quero na verdade dizer só uma coisa, que o clichê gigantesco só virou um clichê gigantesco porque a humanidade o usou à exaustão e a humanidade só o usou em exaustão pois não há verdade mais absoluta para o humano humano que isso, ou talvez até haja, mas que é verdade absoluta é, entregar-se de corpo e alma e ser correspondido tanto quanto o primeiro fez é uma das maiores realizações nessa vida, não sei se você consegue entender, pois não entendes de muita coisa como já disse, mas vou manter minha opinião mesmo que não queiras entender, caso não querias só te levarei para o meio da grama, não bem o meio como já falei, a noite curta, as bobagens matemáticas, não é pra isso que existe a grama nem a noite, mas te deitaria na grama, te encheria com essa homilia neural, te falaria das estrelas e de Vênus que está visível por essas épocas, te falaria qualquer bobagem parecida, e você não entenderia bulhufas, mas buscando segurança nas coisas não tão seguras e certas, mas que trazem alento momentâneo por algum tempo, fiaríamos abraçados debaixo da chuva, e transformaríamos a grama num igapó particular, e nos afogaríamos no meio da madrugada, em nossos próprios refúgios ininteligíveis, eu em meus pensamentos, você em seu corpo.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

O deserto dos banqueiros

Detesto bancos. Tal qual finais de ano, como escrevi na última croniqueta cá publicada, antes de dar uma quinta-feira de folga a mim mesmo. Explico o motivo: Bukowski, Cervantes e Hemingway – para ficar só nesses exemplos - que me perdoem, mas escrever bêbado não é para meu calibre. Fica aqui meu pedido de desculpas. Agora, ao banco, para meu suplicio.
Não gosto de bancos porque eles me lembram abatedouros. Pessoas comuns confinadas como gado, obrigadas a passar horas em filas, desapercebidas para o fato de que em breve enfrentarão caixas treinados para defender as fortunas de banqueiros impiedosos num ambiente de assepsia brutal, uma espécie de deserto habitado por chacais famintos que desidratará muitas vezes suas únicas economias e jogará seus corpos descarnados às bestas. De toda sorte, porém, com ou sem minhas resoluções particulares, resolvi abrir um conta bancária. Vinte um anos, de acordo com minha mãe, é idade mais que suficiente para que eu comece a administrar minhas parcas, minguadas, ralas e raras finanças. Na minha idade, veja só, ela já administrava uma casa, tinha dois filhos! Antes de tudo, é claro, resisti à idéia. Questionei-a a respeito de que talvez a solução para minha pessoa seria, ao invés de abrir uma conta no banco, fazer o filho – pareceu-me uma boa e divertida idéia; não o filho em si, mas o processo de confecção. Não, não era a solução, disse-me ela. Sendo assim, dirigi-me ao banco e abri a conta, depois de me complicar todo com um questionário; declaração de renda, essas coisas todas.
Dois dias depois, fui estreá-la, orgulhoso – meio enfadado, é verdade, mas orgulhoso. Nunca tirei os sisos, nunca criei juízo; uma conta bancária talvez fosse os sinal de que minha maturidade começava a acenar-me de longe; talvez eu estivesse chegando à idade adulta. Entrei no banco, olhando a tudo e a todos de cima para baixo. Lembrei de Balzac: os homens esquecidos pelo mundo vingam-se dele olhando-o de cima para baixo. Com os olhos altivos, procurei meu caixa específico. Por algum motivo que desconheço sou cliente class e tenho um caixa específico. Fiquei na fila, envergonhado, detestando a mim mesmo por fazer parte daquela segmentação. De um lado, um fila enorme de outsiders que como um intestino delgado fazia curvas e curvas. Do outro, eu e meus colegas de class. Dois ou três. Algum sociólogo deveria estudar as filas de bancos. Tenho certeza que sairá alguma coisa interessante daí. Para passar o tempo, reparei na gravata dos caras que circulavam pelo banco, orquestrando aquela hemorragia de dinheiro. Gravatas são símbolos fálicos, sempre defendi isso. E sempre me pergunto que espécie de idiota andaria com um símbolo fálico dependurado no pescoço. Hm.
Minha vez, anuncio para a moça do caixa que me atende:
- Oi, moça. Eu queria fazer um depósito.
- Cheque ou dinheiro?
- Cheque, digo eu.
Ela me olha com um sorriso complacente. Em verdade, vos digo: quando uma mulher lhe olha com um sorriso complacente, saia da frente. Elas rodam a baiana.
- Cheque só no auto-atendimento, disse-me, de maneira muito mais cordial do que eu esperava. Preciso parar com essas neuroses, quem sabe recuperar um pouco da fé na raça humana. Nem todo mundo faz da indelicadeza estilo de vida.
Mas estranhei, admito. Como assim não faz depósito de cheque aqui? Qual é a puta diferença? Não, não faz. Sinto muito. Quem sentia muito era eu, oras. Mas como não entendo nada de bancos, achei melhor não prolongar a discussão. Ela voltava a sorrir complacentemente e o mais correto de minha parte era não abusar da sorte, já que escapara ileso da primeira vez. Volvi e fui ao caixa eletrônico. Agradeci ao fato de não haver fila, pois sabia que ia demorar uns bons dez minutos até entender a lógica da máquina; assim, eu não corria o risco de ser xingado pela demora. Processo feito, dinheiro depositado, atravessei a rua para tomar uma cerveja, satisfeito. Oras, agora já sou um homenzinho, tenho o direito de molhar a goela nesta tarde de calor infernal, esta guerra já perdida contra o sol de dezembro. Acabei tomando umas seis, eufórico, e duas ou três cachaças, de modo que voltei para casa um tanto embriagado. Mas satisfeito. Muito satisfeito.
No dia seguinte minha mãe novamente (sempre ela, sempre novamente) alertou-me para o fato de que seria melhor tirar um extrato, ter uma prova caso alguma coisa ocorresse com meu rico dinheirinho. Minha mãe vive às voltas com essas teorias conspiratórias. Contrariei-me. Disse que ir dois dias seguidos ao banco ia contra meus princípios. Eu podia ter um piripaque, pegar uma infecção naquele ambiente asséptico. Sim, uma infecção, ora pois. A pior das infecções – a infecção do lucro pelo lucro. Ela limitou-se a perguntar quando eu de fato ia crescer. Fiquei desarmado e, batalha perdida, fui novamente ao banco. Caixa eletrônico, apertar os botõezinhos, tira da carteira o papel com o número da conta, errar a digitação, voltar, fazer de novo, e agora onde diabos eu enfiei minha senha? Por fim, surpresa: saldo zero. Zero. Zero! Mas não é possível, será o Benedito?, ontem mesmo moça, lembra de mim? Pois então, ontem mesmo eu vim aqui, não vim. Sim, naturalmente que vim. Não estou ficando louco. Pois então, ontem mesmo eu vim aqui e depositei nesta conta aqui – apontava para o papel com o número da conta – e depositei dinheiro. Quanto? Oras, quanto, como assim? Não seja indiscreta. Quando é problema meu. Sim, meu. O problema seu é que o depósito desapareceu. Sim, eu tenho certeza. Desapareceu sem deixar rastros, como se nunca tivesse estado lá.
De fato, nunca estivera lá. Demorei boa parte da tarde pra perceber que tinha depositado o dinheiro na conta errada. Inferi daí que bom mesmo é não crescer. Bom mesmo é ser criança. Bom mesmo é jamais precisar atravessar o deserto dos banqueiros.