O som do tênis no asfalto ouvia-se em toda a rua. O ar entrando pelas narinas fazia barulho também, assim como as poucas moedas que chacoalhavam e batiam no cano de seu 38, apressadamente acomodado no bolso da calça jeans. O caminho que escolhera era o mais rápido até sua casa. Mas ele não precisava estar correndo por esse atalho agora, se há tempos atrás não tivesse entrado num outro caminho, que já não tinha mais volta.
As pernas faziam o que podiam. O corpo, já bastante desgastado para um jovem, não contribuía. Enquanto usava a força das coxas e agüentava o impacto nos pés ao percorrer sua via crucis, arrependeu-se de todo os pecados. Há sete anos, entrou para a escola. Há cinco anos, abandonou. Há quatro anos, fumou o primeiro baseado. Há três anos, aprendeu a roubar direito. Há dois anos, experimentou pela primeira vez cocaína direto na veia. Há um ano, foi expulso de casa. Há três meses, prometeu pagar toda sua dívida com um traficante que o ameaçava. Há três horas, recebeu uma ligação de casa - era a mãe pedindo socorro. Há vinte minutos, arranjou uma arma. Desde então, só o que faz é correr desesperadamente aquela rua escura e comprida.
Apesar das brigas constantes, dos roubos e da expulsão do próprio lar, ainda amava a mãe e as irmãs (meio-irmãs, a bem da verdade). Eram as únicas pessoas por quem tinha carinho. Nunca conheceu o pai. Odiava o padrasto.
Ainda correndo, lembrou da primeira vez que a irmã sorriu para ele, ainda recém-nascida, e ele também bastante pequeno. Lembrou de um longínquo Natal em que ganhou o brinquedo-febre da época, resultado das economias da mãe. As lágrimas saíam dos olhos mas logo tornavam-se secas pelo vento gelado da madrugada. Não podia deixar que sua família sofresse por sua causa. De repente, não muito distante, o barulho de tiros e gritos.
Com o desespero, acelerou a corrida. Virou a esquina. Todas as casinhas mal iluminadas fechadas, mas visivelmente com pessoas dentro, refugiadas. Para elas, mais um dia de inferno na região. Mas um dia como nenhum outro para esse garoto. Lá estava sua casa. Luzes acesas. Portão aberto. O coração parecia disputar espaço com os pulmões no peito comprimido. A mão sacou o revólver, a outra engatilhou. Os joelhos dobraram para a cabeça não ficar acima do muro. Os pedregulhos pressionados pela sola do tênis contra o concreto faziam barulho. A respiração ofegante também. Passo por passo, entrou pelo quintal, foi até a porta principal, entreaberta, e entrou. Os dedos não tiveram forças para segurar, e o 38 caiu no piso de madeira. A mãe estava desacordada no chão da sala, apoiada nas paredes, coberta pelo sangue que ainda escorria da cabeça. O corpo do marido inexplicavelmente parecia protegê-la. Andou dois passos, num ângulo que possibilitava enxergar as duas irmãs, uma de 11 e outra de 15, abraçadas no quarto, imóveis, ensangüentadas entre os ursinhos de pelúcia. Cambaleou dois passos para trás.
Não viu de onde veio o tiro. Os joelhos bateram no chão primeiro. O peito e o rosto, logo em seguida. Atrás dele, o policial que havia acabado de chegar ao local.
A manchete do dia seguinte juntava-se a outras do caderno policial. “Chacina deixa quatro mortos e dois feridos em São José dos Pinhais”. O delegado explicou: as vítimas eram ligadas ao tráfico de drogas. O leitor virou a página. O garoto ficou sem nome. Outros detalhes não foram contemplados pela reportagem e não tiveram mais relevância no dia seguinte.
http://portal.rpc.com.br/gazetadopovo/vidaecidadania/conteudo.phtml?tl=1&id=814041&tit=
sexta-feira, 10 de outubro de 2008
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Um comentário:
PUTA TEXTO DO CARALHO!
Pupo, demorei pra ler, mas isso derreteu meu coração. Acho que é exatamente por isso que eu gosto de você, seja lá o que isso for.
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