terça-feira, 7 de outubro de 2008

Como um rouxinol com dor de dentes

“Só como alimentos brancos: ovos, açúcar, ossos moídos; gorduras de animais mortos; vitela, sal, cocos, frango cozido em água branca; mofos de frutas, arroz, nabos; chouriço canforado, pastas, queijo (branco), salada de algodão e certos peixes (sem a pele)

[...]

Meu médico sempre me diz para fumar. E acrescenta a seus conselhos:
- Fume meu amigo, se não outro fumará em seu lugar”.

Erik Satie, em O Dia de um Músico.



Eu nunca consigo dizer o quanto eu gosto de sujeitinhos espirituosos que conseguem incluir suas respectivas espirituosidades nas músicas que fazem. Realmente, eu nunca consigo. Que ninguém duvide de mim. Toda vez que eu leio, assisto a, ouço ou lembro de alguma piadinha de humor refinado e sem graça que algum músico engraçadinho resolveu jogar nos seus trabalhos, ou em alguma entrevista, ou em qualquer outra situação, juro que tento explicar para os outros. Eu tento explicar o quanto eu me senti feliz com aquela situação totalmente sem graça, o quanto aquilo fez o meu dia. Eu nunca consigo. Mas vendo pelo lado bom: já consegui com essa história inúmeras demonstrações de preocupação, de apreço, coisas que me mostraram que as pessoas realmente se esforçam em me compreender. “Coitada, se isso é o que faz você rir, agora entendo porque suas piadas são sempre tão ruins”, ou algo assim.

Mas tudo bem. Eu fico muito feliz mesmo quando as pessoas se preocupam comigo.

Voltando ao texto, estou com muita vontade de me enrolar muito numa linguagem meio prosaica, ou qualquer termo que se julgue adequado. Mas tudo bem. Eu não sei nada de lingüística mesmo, só de música. Eu bem que gostaria, mas já faço duas faculdades. Meu cérebro está ocupado o bastante. Por isso, que os lingüistas de plantão – se houver algum por aqui – façam um esforço em compreender uma situação como a minha. Estamos combinados?

De qualquer forma, eu só estou aqui para demonstrar meu amor pelo pai da “satiricidade” em obras de caráter erudito (e essa, músicos de plantão - se houver algum por aqui-, é uma afirmação que eu faço decididamente sem embasamento teórico nenhum, ok? Estamos combinados, então.).

O que dizer de um senhor que se proclama adepto de uma só religião, a da “Igreja Metropolitana de Arte e Jesus como Guia”, da qual ele mesmo é o fundador, e cujo único adepto é ele mesmo? O que eu posso dizer de um senhor respeitoso que escreve uma peça para piano para ser repetida 840 vezes e que dura no mínimo 18 horas? (E aqui eu aproveito para registrar também o quanto eu fico feliz que John Cage tenha existido, esse que foi talvez o único, eu imagino, mas com certeza o primeiro que se meteu a dirigir e apresentar a peça de Satie na íntegra. Mas assim, o Cage é assunto à parte, do qual eu ainda gostaria de tratar em outro texto. Cage não era engraçado, ou não pretendia ser, mas o que ele fez com certeza foi contra a chatice costumeira das rotinas diárias. E Sr. Poletto, espero que você não se importe de eu ter roubado o seu recurso de escrever chatices enormes entre parênteses, mas é que eu realmente gostei da idéia. E talvez eu nem precise me preocupar com isso, já que você já deve ter parado de ler o texto)

Decididamente um senhor assim fala por si. Um senhor que, de alguma forma, não se afetou totalmente pela epidemia wagneriana que contaminou todos os músicos do fim do século XIX e mandou todos eles serem sérios e chatos como Tristão e Isolda. Eu nunca, NUNCA consegui ouvir a ópera inteira. Ela me dá agonia. Meu professor de música contemporânea que me desculpe. Mas essa é a verdade. Apesar de eu ter falado bem de Wagner na prova, eu nunca gostei dele. E sempre preferi os vanguardistas que não decidiram aprofundar o tonalismo em técnicas ininteligíveis, ou que não gostavam da seriedade que tem nessas levas de compositores. Assim, eu sei que Schoemberg é decididamente a figura mais proeminente do século XX. Eu sei que ele escreveu os princípios da harmonia funcional, e que ele morreu falando que muita coisa ainda poderia ser feita em dó maior. Mas eu nunca consegui ouvir uma obra dodecafônica dele e achar bonito. E eu sei que Satie não pôde escapar de ser afetado pela onda-sensação wagneriana de não poder mais compor obras tonais e certinhas e “polidas”. Mas ele fez isso de uma forma muito engraçada. Muito legal. Eu gosto de Stravinski, mas ele nunca conseguiu ser tão legal quanto Satie.

Mas eu quase não falei do trabalho do Senhor Satie. Pois bem, este é Erik Satie: um senhor que começou escrevendo obras medievais com ar místico e acabou antecipando o impressionismo, que daí se cansou disso e foi tocar valsas em cabarés, que daí se cansou disso e foi tirar um diploma de contraponto e escrever suas peças mais engraçadas e importantes. Gosto muito de pessoas instáveis. Elas deixam um trabalho diversificado e são engraçadas.

Alguns nomes de peças do Senhor Satie (como eu disse, ele fala por si): Três Peças em Forma de Pêra (1903), Prelúdios Flácidos para um Cão (1912), Três Valsas Distintas do Afetado Enfadonho (1914). Algumas de suas indicações na partitura para os músicos intérpretes: “sem enrubescer o dedo”, ou “como um rouxinol com dor de dentes”.

Meus entendimentos sobre o humor do Senhor Satie (E SE VOCÊ NÃO QUISER LER O TEXTO INTEIRO, PODE PULAR PARA ESSA PARTE, POIS ACREDITO QUE AQUI VAI ENTRAR A CONCLUSÃO): apesar de não ser engraçado assim de uma maneira como todos vêem o engraçado hoje, o humor do Senhor Satie era um humor crítico. Aquele humor que você demonstra porque o dia-a-dia é muito chato, porque as regras são muito chatas, porque o academicismo é muito chato. E as pessoas, mesmo que Satie tenha existido, mesmo que vários outros incorporantes do “humor-flecha” tenham existido, continuam chatas. Tudo continua a mesma coisa. O mundo teima em ser enfadonho. O que o mundo precisa é de mais Saties. De mais Arrigos (que já fez muitas coisas dodecafônicas, mas todas muito engraçadas), de mais Lennons, de mais Itamares. E enquanto o mundo não abrigar mais pessoas como eles, eu vou ficar insistindo em textos gigantes e enfadonhos (acredito que tédio só se pode combater com mais tédio, assim as pessoas talvez vejam como elas são tediosas). O que eu quero dizer é que o mundo, assim como a música, não pode ser feito só pelos chatos. Também por eles, mas não só por eles.

Como eu havia dito, e meu texto prova a veracidade da minha afirmação: eu nunca consigo dizer o quanto eu gosto de pessoas espirituosas. Eu juro que tento, mas não consigo.

Um comentário:

sandoval matheus disse...

Mari, roubar recursos alheios é uma coisa chata.

mas tudo bem, eu perdôo.