quinta-feira, 6 de novembro de 2008

O Estado e os cigarros

Em última instância, a pátria é uma instituição abstrata, quase sempre despropositada. A idéia fica mais clara quando analisamos países continentais como Brasil, ou a África, com suas fronteiras feitas à régua. A pátria é quase sempre algo artificial, plástico, unificado à força, desconsiderando particularidades regionais. Acima dela paira o Estado, regulador, responsável por mantê-la sem maiores atrapalhos – numa mão o diapasão, na outra o monopólio da força.

De que serve o Estado? Simplificando bastante, é aquele que tanto bate quanto assopra para que nós – sociedade, povo – não causemos maiores problemas à estabilidade do país. A política é uma arte de previsibilidade, quase um exercício de futurologia – eis a questão. Mas até onde pode ir o Estado? Isso já é mais complexo. O tema não é de forma alguma novo e já foi explorado absurdamente pelo cinema e pela literatura – 1984, de Orwell, talvez seja o mais perfeito exemplo; tão perfeito que virou inclusive um clichê. Está tudo lá: o controle absoluto dos indivíduos, de seu trabalho, de seu lazer; o duplipensar; o monopólio do Estado sobre a morte.

Aí está o ponto, e nem ao menos é um ponto distópico. Todas as religiões monoteístas condenam desde sempre o suicídio, com o discurso de que ele é o único pecado sem perdão; o Estado dito laico absorveu a idéia, ilustrada na proibição da eutanásia. É a eterna dificuldade do homem em aceitar a finitude da condição humana, agora cambiada em instituições. A tevê, na sua ânsia de agradar ao todo, nos fulmina com programas sobre como viver mais e melhor (?) - uma taça de vinho por dia e chegue aos 80 anos; duas bananas e a vitalidade da pele, etc. Tudo desemboca na mentalidade atual de que todos precisamos ser saudáveis. Mentalidade que acode ao desejo primal do homem de longevidade e também à necessidade do Estado por força de trabalho e eventual contingente militar.

O sucesso da auto-ajuda, a meu ver, também tem a ver com isso. Uma tentativa boba de transcender para cristalizar uma vida efêmera.

Daí a vilania do cigarro hoje, que é mais uma escolha deliberada de alvo fácil do que necessariamente de mensuração de males. No mundo moderno, o cigarro é apenas um num universo de “malfeitores”: comida industrializada, stress, poluição. O movimento do Estado é lento, porém. Por isso a necessidade de enxergá-lo em perspectiva. Do cerco ao cigarro podemos perfeitamente chegar ao cerco à carne vermelha. É uma questão perfeitamente racional, em relação ao cerceamento das liberdades individuais, a atitude primeira dos totalitarismos – Estado forte, centralizado, um pastor de carneiros submissos.

O – mau? - hábito de fumar deixou de ser glamouroso. Ninguém mais se sente charmoso com um cigarro entre os dedos. Cada vez mais o fumante é vítima de preconceito. Um preconceito ingênuo, que desconsidera toda a miríade da vida moderna, e que vem de todos os lados – família, trabalho, etc. Desconsidera também o fato de que viver envolve certa margem de risco e que abrir mão da liberdade em prol da “segurança” é uma afronta aos ideais que tanto defendemos nos últimos três ou quatro séculos. Ao contrário de glamour, podemos ver no cigarro atualmente muito mais um gesto de rebelião, daqueles que querem ter algum direito sobre a própria vida – e morte.

Ah, é claro: ele também é o maior ansiolítico já inventado.

2 comentários:

amanda audi disse...

Concordo demais com tudo!

(Agora imagine você lendo tudo isso num telejornal)

Yuri A. disse...

Concordo que a vida moderna é letal, mas ficar aí chupando o pirulito sabor metástase não vai ajudar muito, Sandoval.
Mas fumar é charmoso. O segredo de Humphrey Bogart? Certamente os três maços e meio diários (e desconsideremos o que se seguiu). Mas para isso é preciso certo élan pessoal, afinal de contas, o Zé do Caixão fuma o mesmo tanto e ninguém cai de amores por ele.
Abraço!