"Se acaso me quiseres, sou dessas mulheres que só dizem sim
por uma coisa à toa, uma noitada boa, um cinema, um botequim
(...)
mas na manhã seguinte, não conta até vinte, te afasta de mim
pois já não vales nada, és página virada
descartada do meu folhetim."
Sou suja e velha. Tenho, por conveniência, vinte anos, mas os olhos são feitos de mais. Mas sou bonita. Aos que pensam assim, já desminto: não é pelo sexo que eles me condenam.
Minha maldição é a honestidade. Dela, conheço mais que o cheiro, que a dor, que o arrepio. É dela que vem meu karma; é por causa dela que me cospem, que me vaiam, que cochicham ferozes quando passo. Se eu me fingisse, se mentisse, disfarçasse, não seria tão hostil. Sou infiel; mas não é por isso que me condenam. Sou infiel e não só assumo – faço questão de avisar. A honestidade é quem me amortece das pedradas. Conheci um homem certa vez. Não era bonito nem feio. Gostava de mim. Mimava meus dias com uma devoção quase cruel - dava-me perfumes, pagava-me jantares, abria a porta do carro quando me levava a lugares onde podíamos ficar à vontade. Pulsava no peito dele a paixão. No meu peito, quase sempre coberto por grandes mãos ou pêlos ou peles, pulsava a luxúria. Tantos mimos me fizeram acostumar. Numa noite, ele distante, outro homem se aproximou valente, desbravador, como se soubesse estar entrando em terreno alheio. Parecia gostar. O calafrio lânguido das coisas sujas e erradas que fazemos me agrada; sou barata. Me deixei tomar, pegar, sentir – me libertei das correntes do dia e me atei com força às da noite. Aprisionei-me por mim mesma num caminho de prazeres e prendas (e dores, dores ardidas, que forçam suspiros, que pedem gemidos, que exigem pequenos rasgos de carne, de sangue, o suor que corre o corpo todo, as mãos, os úmidos, úmidos, molhados de desejo, de vergonha, de um coração que bate forte, forte, a força das mãos que pegam e passam e puxam e rasgam e soltam e pegam de novo, e o corpo que vive sozinho, e pulsa, e pulsa, e pulsa, e pulsa, com força, sem carinho, sem cuidado, só a força o suor o gemido a entrada os olhos que fecham que apertam que choram a dor, a dor, a dor, a dor o mundo que pára que cheira que goza que vaza que vaza que vaza que vaza que vaza, e que então, acaba). A princípio, não contei ao primeiro. Deixei que continuasse a me mimar, me dizer o quanto sou bela, me acariciar os cabelos, com cara de quem sabe o que quer. Não me incomodo que seja assim. Não quero que seja diferente. Um dia enjoei, pedi que me esquecesse. Disse adeus. O homem ficou bravo, quebrou o vidro, rasgou a foto, bateu o carro. Não liguei. Assim, da mesma forma, se deu com outro, e outro, e mais outro, e uma sequência de vários, que administro como bem entendo e de acordo com o meu humor do dia. Sou egoísta. É o egoísmo que me julga, que me denuncia aos olhos dos outros, de todos os outros, das verdureiras, das mães, das meninas da feira, dos homens que compram jornal. Eles me condenam por ser assim e por gostar, por não reclamar da vida, dos homens, do pouco dinheiro, do tempo que mudou. Por me dar inteira aos prazeres e gritar bem alto quando aquilo chega intenso e dolorido, profanando a rua, a noite calma, o entardecer, o meio dia, na hora do almoço das crianças, da missa na igreja, do mendigo pedindo esmola. Me condenam por deixar claro e aberto que não há como ser diferente. Que não vou jamais ser só de um. Me condenam por ter me tornado arisca e arredia e escorregadia, e por saberem que isso tudo me favorece maravilhosamente. Me condenam por ser vadia e ainda assim bonita. Bem cuidada. Por seduzir todos sem pudor e ainda assim fazê-los sentir que são os únicos. Me condenam por mentir, por profanar, por magoar corações desavisados. Por ser vilã e mocinha, por saber como é a vida, por sentir tudo que dá. Não é pelo sexo que eles me condenam. É por ser exatamente aquilo que todo mundo quer ser, mas não diz.
Por amar, quem me condena sou eu.
5 comentários:
pqp, tu é foda amiga. não condeno, apóio e pago pau msm!
meu achado! amo!
texto maravilhoso, muito bem escrito.
Sim, gostei muito dessa leitura!
joga pedra na Geni
Èpa heyi, Iansã!!!
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