quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Paulo e Maria

Maria Aparecida tem 40 anos, 1,60 de altura, poucos quilos, dois filhos e uma sobrinha. Ela mora em alguma rua da periferia de Curitiba, de favor na casa da irmã. Durante o dia, vai para o Centro junto com seus meninos para fazer alguns bicos e pedir trocados. A vida é dura; o feijão é pouco. Ela saiu de casa na sexta-feira de manhã, com alta irritabilidade no nariz, para batalhar alguns trocados. Sua irmã havia lhe pedido para ajudar nas contas da casa, o que ela raramente fez; ou por não poder ou por ter outras prioridades. Acabou passando a noite na rua, e amanheceu no sábado no sofá de uma conhecida. Encontrou Renato, seu filho mais velho, e a sobrinha, Caroline, em frente ao Mercadorama da Rua Mariano Torres. Eles iriam tentar catar latinhas para vender, e foram subindo a XV de Novembro. Atravessaram o calçadão e a Praça Osório. Só então Maria Aparecida percebeu que havia ficado menstruada.

Paulo José tem 35 anos, uma mulher e duas crianças, uma casinha no Boqueirão e dois cachorros Fox Paulistinha. Um se chama Zé e o outro Lelé. Paulo é segurança. No sábado, ele acordou atrasado e perdeu o ônibus para o Centro. Não deu tempo de tomar café. Pensava nesta desavença da vida cotidiana enquanto colocava seu imponente terno engomado. Maria do Carmo, sua esposa, fazia questão de lavá-lo e passá-lo todos os dias. De seu posto habitual, no corredor do piso inferior do centro comercial, observando o movimento, Paulo viu quando Maria Aparecida, Renato e Caroline entraram no shopping center. Ele precisava agir.

Maria Aparecida sabe que não é bem-quista naquele lugar. Ela pode ver nos olhos de todos que estão ali, com suas roupas passadinhas e cheirando a perfume do Boticário. Está acostumada a ser vista assim, com maus olhos. É verdade que às vezes pratica pequenos furtos, mas nada que fosse mudar a vida de alguém. Ela só quer ir a um banheiro e se limpar, afinal sua dignidade está manchada. Caminha até o segurança, que está parado com cara de poucos amigos. Seu filho e a sobrinha estão olhando algumas vitrines. Com coragem e desdém, característicos de quem sempre apanhou e já tem o olhar firme para desafiar, ela pergunta a Paulo José onde é o banheiro. Ela também queria importuná-lo, por motivos inexplicáveis e entedíveis somente por aqueles que já acumularam tanto sangue nos olhos quanto sangraram pelo corpo.

Paulo ouviu a pergunta, mas limitou-se a agarrar Maria Aparecida pelo braço e puxá-la até a porta do estabelecimento. A pressão de seu punho não era forte, e com palavras brandas ele dizia que a senhora poderia usar o banheiro de algum bar daquela rua. "Eles todos deixam, não se preocupe. Mas não posso deixar a senhora ficar aqui". Maria Aparecida não entendia. Já estava esperando uma resposta mal educada do segurança, mas nunca imaginou que ele a iria enxotar dali. Estava cansada, humilhada e com as calças manchadas. Fez um escândalo.

Já na rua, Maria Aparecida era amparada por seu filho e sobrinha. A garota pedia para que o menino procurasse uma calça para a tia, enquanto a ajudava a se restabelecer. Antes tão sisuda, Maria Aparecida estava desolada. Chorava alto e dizia que foi tratada pior que a um cachorro para quem quisesse ouvir. Paulo José assistia à cena da porta. As pessoas que passavam olhavam com olhares de censura; para ele ou para ela. Não era unanimidade quem era o vilão e quem era o mocinho.

Os comerciantes diziam "que absurdo! Uma mulher bêbada criando caso". Os passantes se entretinham com a novidade da tarde monótona de sábado. Maria Aparecida, Renato e Caroline seguiram seu curso. Ela chorando, eles xingando. Quase ninguém viu quando Paulo José, envergonhado da sua atitude, entrou discretamente no interior do shopping e se encorujou na velha posição. Em casa, esta noite, sua mulher lhe consolaria dizendo que ele fez o que devia fazer. À noite, sonhou que estava se afogando e acordou assustado. Não quis acordar Maria do Carmo. Foi até a cozinha, pegou um copo d'água e respirou fundo. Passou.

(inspirado em fatos reais)

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