domingo, 2 de novembro de 2008

maldito III - A Mãe


Werner Bischof, India. 1951


quando, seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar
já foi nascendo com cara de fome
e eu não tinha nem nome prá lhe dar
como fui levando
não sei lhe explicar
fui assim levando
ele a me levar

O Meu Guri, Chico Buarque



A mão, nunca levantei; a mão, o cinto, o fio de luz. Esse intenso que me dói tão fundo foi sempre tão mais forte do que a raiva, do que a decepção, do que a dor. Eu e todas aquelas como eu nos munimos do paradoxo divino de conviver a dor e a alegria, e da desgraça de guardar no peito tanta coisa que ninguém nunca soube nomear.

Do que sou feita não sei dizer. Abro os olhos e respiro a agonia de me saber o mais humilde dos seres humanos; aquele que menos sabe, aquele que menos diz. Entre remédios improvisados e convencimentos de mim a mim mesma, não sei dar nome a metade daquilo que me aperta o peito. A culpa é minha, única responsável: como poderia alguém nomear o que não sente? Ah, que se pudesse pedir, pediria só uma coisa, uma só, longe de mim debulhar-me em pedidos e tristezas, que se nasci mulher nasci pré-fadada a tais tormentas. Pediria e isso sim, a calmaria de um rio translúcido, tão opostamente distinto ao meu coração. Que não me dói quando me bate, não me dóem as palavras amargas e dilacerantes, não me dói a vergonha frente a outros que tem os seus mais bem arrumados e sucedidos, não me dói tanto a mentira, a traição, a indiferença, a violência praticada, o desalento, o desconsolo, o desatino. Ou, se dói, quem sou eu pra reclamar; se me vi acorrentada, algemada, retorcida no momento em que dividi-me em dois, em que arranquei de mim toda a parte boa, a parte pura, a parte digna, e que a tive engolida pelo mundo sem que nem tivesse oferecido, e o mundo estendeu os braços feios sujos e verdes e levou consigo a minha parte melhor e assim largou-me à tortura de assistir aos poucos ao corrompimento de tudo aquilo que era eu e que não é mais. Assim, dei-me à desgraça: a desgraça de não saber doer, de absorver a dor e a amargura em uma esponja vermelha e pulsante, e que de lá vá tudo sabe-de lá para onde, que tenho outras preocupações nessa vida além de choramingar. Tenho ainda de dar de comer, tenho de costurar os cortes, de limpar as carnes, tenho de fazer ninar, de me oferecer o peito todo aberto àquele mesmo montro das mãos sujas quatro vezes por dia, se não mais, tenho ainda de tomar cuidado com os carros, com os vírus, com cadarços; tenho de esquentar a sopa, o colchão e o desespero. Tenho de engolir pregos quando me perguntam porque é que o fiz, que não o tinham me pedido; quando passo a ser responsável por tudo, porque é minha obrigação aguentar; quando sou velha, resmungona, quando não mereço atenção, quando envergonho, diminúo, quando sou feia, dou trabalho, exijo tempo, quando não me importa o peito mas a carteira, quando não valho a pena, simplesmente. E na madrugada seguinte, de olheiras e coração em boca, a esperar passos que me acalmem o peito condenando finalmente a volta saudável de alguém que sou ou fui, quando me levanto e sei que vou a dar de cara, mais uma vez, com um mundo inteiro verde e sujo cujos dentes estão à minha porta e a língua ácida entrando pelo quarto daquilo que já fui, me apego às panelas, às facas, aos isqueiros, àquilo que tiver a mão e sigo, rumo ao mundo, me valendo daquilo que tenho e que não tenho, do peito, das vozes, do estômago, aos gritos e com força, atravancando o caminho de qualquer que seja a ameaça que pode ser que faça doer a parte separada de mim, mesmo essa parte às minhas costas, a me espetar e me puxar pelos cabelos ansiando entregar-se ao monstro, que chama de jeitos tão sedutores mas que eu, por instinto, desconfio e não posse convidar a entrar. E apunhalada pelas costas eu sigo ali, fazendo dos pés raízes fortes que sustentem, à frente, o mundo. Mas por isso não posso reclamar, ora essa, não por isso, porque esse é meu fardo e é a isso que sou. Que se pudesse pedir, pediria uma coisa só, pediria a calmaria de coisas que continuem a ser como são, e que se tiver de doer, que doa; porque é assim que se combate o perigo e é assim que se respira o amor, mesmo escondido, mesmo um amor arredio, que não me vai voltar a mim: sou provedora e não cabe a mim me renegar ao posto. Se sou mãe de filho, sou mãe de todo o resto das coisas que existem, de todas as coisas que existem, porque não há ainda nada nesse mundo que se tenha feito imune pelo que sobrou das partes arrancadas.

2 comentários:

sandoval matheus disse...

classe.

amanda audi disse...

iasa, isso foi uma das coisas mais lindas e verdadeiras que eu já li. obrigada :)

"um amor arredio, que não vai voltar a mim"