segunda-feira, 17 de novembro de 2008

O lado esquerdo da cama

Ela sempre dorme do lado esquerdo da cama.

Pode ter sido um dia bom. Talvez aquele sol de fim de inverno tenha saído no exato segundo que aquele acorde daquela música que ela gosta soou, enquanto ela estava presa no trânsito indo para o trabalho. Isso me deixa feliz, por algum motivo que eu jamais soube, talvez a deixe também. Não sei. Faz tempo que a gente não se fala.

Talvez o dia tenha sido ruim. O esmalte de sua unha descascou enquanto lavava suas mãos. Isso pode ser bobo, eu sempre disse que era bobo. Mas ela realmente ficava sentida, quando a gente ainda conversava. Quando as pessoas ainda conversavam.

Talvez ela tenha visto algum velho amigo, quase trinta anos depois, na hora do almoço. Talvez ele tenha a reconhecido. Talvez eles tenham passado a tarde juntos. Talvez ela tenha me traído com ele.

Talvez ela tenha até sorrido para ele. Não importa, ela sempre dorme do lado esquerdo da cama.

Assim como meu filho sempre dorme com as portas fechadas. Ele me disse ontem que teria um jogo de futebol na escola, torço para que ele tenha ganhado. Mas não sei se ele ganhou. Não me ocorreu perguntá-lo.

Assim como não me ocorreu olhar seu rosto assim que cheguei em casa. Entender sua resposta quando lhe perguntei, sem prestar atenção, como tinha sido seu dia. A resposta é sempre a mesma, só a entonação muda. Mas eu não reparo mais nas entonações.

Ele não deve ter feito o gol da vitória. Não é um bom jogador, para começo de conversa, nunca demonstrou ser. Mas talvez tenha feito o passe para o gol. Um ou outro desarme importante, quem sabe. Talvez tenha ficado no banco, observando todos os seus amigos alcançarem aquela glória que os acompanhará nos dias bons e nos dias ruins para o resto de suas vidas.

Mas não me ocorreu perguntá-lo.

Eu sempre durmo à meia-noite. Não importa, todos os santos, deuses e demônios podem se reunir no meu banheiro, enquanto escovo os dentes antes de ir para a cama, e me implorarem de pés juntos para que ficasse mais quinze minutos acordado. Todo o poder do mundo em minhas mãos por apenas quinze, quinze minutos. Toda a glória, todo o ouro. Todos os sonhos, tudo.

Só mais quinze minutos.

Ainda assim eu diria não. Eu sei que vou acordar às seis e meia. E são essas seis horas e meia de sono que garantem oito horas de trabalho, uma hora de alimentação, duas horas no trânsito e um silêncio perpétuo enquanto vejo corpos se mexerem em uma TV muda.

Essa é a vida que eu construí. Esse é o conforto que eu escolhi. Não sei mais o que poderia desejar agora.

O cachorro sempre late quando eu desço as escadas. Por isso eu tento ser o mais silencioso possível. Talvez eu tenha tomado uma dose a mais de café. Talvez eu tenha tomado um Valium a menos. Talvez o meu dia tenha sido tão ordinário quanto qualquer outro dia, talvez eu tenha ficado preso no trânsito na mesma rua, ouvindo a mesma música, pensando nas mesmas coisas, relembrando o mesmo passado, mas ainda assim eu cedi aos deuses, santos e demônios reunidos no banheiro. Sem nenhum motivo, apenas resolvi ficar acordado.

E, quando o cachorro finalmente late, eu tento pensar o por quê dele fazer isso. Talvez eu esteja invadindo seu território. Talvez eu esteja invadindo o meu território. Talvez eu esteja fugindo do meu território.

Talvez ele só queira um pouco de atenção.

O café sempre está pronto para amanhã. Cafeteira cheia até a marcação oito. Quatro colheres de pó. Só apertar o botão.

As chaves do carro estão no terceiro prego. O carro está na garagem. Isso significa que eu estou em casa.

Mas hoje eu desafiei os deuses, santos e demônios do meu banheiro. Desafiei a voz do meu cachorro, desafiei tudo o que construí. Saí a pé. Eram três da manhã.

Não entendia exatamente o que estava acontecendo. Eram apenas meus pés se movendo pelo asfalto das ruas do condomínio. Pisando no granito falso das calçadas. As luzes fortes dos postes iluminavam este palco. As casas, todas iguais, estavam escuras. Um ou outro cachorro latia. Nenhum carro. Nenhuma viva alma. O vento frio de fim de inverno balançava as palmeiras falsas. A barra da calça do pijama era estraçalhada, passo a passo, pelos meus calcanhares inquietos. Nenhum carro. Nenhuma viva alma.

Eu não sabia para onde estava indo. E não sabia por que estava indo.

Junto do lago, há um lote vazio. Talvez o melhor terreno de todos, mas por algum motivo, o dono nunca quis construir. Você nunca sabe o real motivo pelo qual as pessoas compram as coisas, talvez não exista nenhum sentido. Era um monte de capim cercado por uma grade de arame em três de suas extremidades. Na quarta, água, só água.

Coloquei meus pés nos vãos da grade, segurei firme, e fiz algo que não fazia desde que era só mais um piá. Pular uma grade. Quebrar a barreira que nos define, que nos dá algum valor.

Corri pelo capim, me joguei no capim, brinquei na lama. Pulei no lago. Chutei a água, enfiei minha cabeça na água. Dei cambalhotas, plantei bananeira.

Ri. Ri como há muito tempo não ria. Um riso tão forte, mas tão forte, que parecia até mesmo um choro. Não existia amanhã. Não existia hoje. Não existia o passado. Todas as memórias, boas e ruins, se apagavam como as luzes do condomínio à meia noite. Como meu corpo apagava toda meia noite. Toda esperança, todo desespero, todo medo. Tudo se perdia de vista.

Os cachorros da vizinhança latiam. Eu latia. Berrava. Uivava para a lua.

Acima de tudo, ria.

Com meu corpo sujo, caminhei pelo granito falso de volta para casa. No trajeto, cheguei a pensar sobre o dia de amanhã. O que diria a ela sobre estar tão sujo e molhado. Como acordaria às seis e meia. Mas nada disso importa. Nada disso importa.

Quando cheguei, meu carro estava na garagem. O cachorro latiu. A chave estava no terceiro prego. O café estava pronto para amanhã. A porta do quarto do meu filho estava fechada.

E ela dormia do lado esquerdo da cama.

Um comentário:

Joana Belarmino disse...

Não entrei por acaso. Estava visitando o google para checar o título de um conto que estou escrevendo. o título? Do Lado Esquerdo da Cama. Uma mulher cujos amores sempre dormiram do lado esquerdo. Pronto, adorei o teu escrito, o título, o argumento é teu. visita meu blog em:
www.joanabelarmino.zip.net