Não me importo com o fato de ser feio. Não me importo com a magreza atávica e irremediável (passei a infância toda sendo obrigado a engolir intragáveis e torturantes tonificantes que de nada adiantaram), com os ossos dos cotovelos à mostra; nem com a altura excessiva, o que chega a me deixar divertido de tão desengonçado; não me importo com o rosto estranho, que parece cortado a machado. Aliás, como tudo é feio, o conjunto chega até a ter certa harmonia; fica suportável aos olhos. Por isso, vou mais longe, e procuro quase que obsessivamente esculhambar minha sintaxe física de vez. Daí os cabelos longos e indômitos de espantalho e a barba rala que (por teimosia e preguiça) deixo crescer, pra acabar ficando com aquela aparência de quem tomou o último banho há uma semana.
É um convicção política, isso de não se importar em ser feio – chega-se a gostar de ser feio. Ser feio é estar à esquerda do espectro; a beleza é a direita. A beleza não se rebela, não se insurge, não pega em armas; a beleza é conformista e conservadora. Nenhuma grande reforma foi iniciada pela beleza, pelos bem asseados. As revoluções são feitas pelos feitos, pelos infectos, pelos despojados e mulambentos. A fealdade é punk, é o sorriso podre de Johnny Rotten. A fealdade é vermelha. E se a história tem mesmo um fim, o fim é nosso (a bênção, seu Karl Marx). Os feios, ao fim, vencerão.
Vou além. Ninguém de olhar menos sonolento se importa com a beleza. A beleza não é curiosa, interessante; a beleza é estandarte, brasão. Curioso mesmo são as mulheres barbadas. Por isso o mundo da ciência se curva diante de nós, os feios; pesquisa a feiúra. A sociologia nos defende, nos protege. Os sociólogos se interessam pelo pobre, pelo carente, pelo déficit sanitário, pelo desorganizado, pelo outsider – em suma, pelo feio. Está cientificamente e quantitativamente comprovado nos anais das pesquisas antropológicas e sociológicas: ser feio é interessante. Ser bonito, não. O bonito já está resolvido, é equação sem incógnita, problema tediosamente solúvel, coisa chata, sem graça, besta de doer. Veja só: uma mulher excessivamente bonita vai ser só isso. Qual é a graça? A beleza, de fato, está em ficar procurando defeitinhos, encontrando-os e achando-os bonitos. Está aí uma coisa que as mulheres precisam entender: os homens também amam as feias; não raro acima de tudo amam as feias.
Por quê? Porque ser bonito é ser constitucional; ser bonito é estar de acordo com a legislação, seguir às leis à risca; ser bonito é bom-mocismo e bom-mocismo é chato.
Mais chato do que ser bonito, só ser feio e ficar tentando reformar a lataria, como se fosse carro velho. Não orna. Um Chevette 79 vai ser sempre um Chevette 79. É feio. Pode ser um feio vermelho, azul, amarelo... um feio burro-quando-foge; um feio com ou sem trio elétrico. Mas é feio. Feio é fim, não é meio; ponto final e não vírgula. Wander Wildner já canta, punk-brega e alcoolizado, que queria ser bonito, mas não consegue. É insensato. O máximo que se pode conseguir com algo feio é deixá-lo feio e espalhafatoso – o que, convenhamos, piora as coisas. São as atitudes drásticas. Pintar seu Chevette 79 de cor-de-rosa, por exemplo. Pronto: agora você que odiava ser feio continua feio - e ainda por cima não pode mais passar despercebido.
Mas não é só isso (nunca é só isso, oras). É preciso admitir a feiúra com convicção, e para isso é preciso transcender, exercitar os defeitos. Não só os defeitos físicos (um lóbulo da orelha maior que o outro, os mindinhos tortos das mãos), mas todos os defeitos. É preciso admitir ser fumante incurável, admitir o eterno mau humor matinal, gabar-se da própria falta de sofisticação... é preciso admitir que você marca os livros com suas respectivas orelhas (as deles, não as suas, leitor estúpido!) e, na falta delas, dobrando as páginas mesmo; ser feio convicto é não ter vergonha das orelhas-de-burro. É ter algumas virtudes (muitas, talvez), mas fazer questão mesmo de exercitar seus defeitos. Ouvi isso em algum lugar: as pessoas gostam umas das outras por suas qualidades, mas só amam umas às outras por seus defeitos. A virtude é genérica (é esteticamente resolvida, não estimula investigação), o defeito é singular, único.
E, no mais, se não fôssemos nós, os feios, como é que os pobres de espírito iriam admirar a beleza? Uma coisa não existe sem a outra. Pensar e catalogar (inclusive de belo ou feio) é abstrair, e o cérebro humano é incapaz de abstrair sem parâmetros de comparação. Os belos têm uma dívida para conosco. Assim, por si só, nossa fealdade é, para dizer o mínimo, perdoada. Fujamos das academias, das clínicas estéticas; admiremos nossa feiúra ao espelho. O mundo nos deve essa.
quinta-feira, 18 de dezembro de 2008
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Um comentário:
sandoval, largue a frustração de lado, rapaz. fodam-se os bonitos. senta aqui no divã e toma um gole seco de vodca.
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