sábado, 13 de dezembro de 2008

sinceridade

gabriel garcía márquez escreveu, certa vez, que é preciso que se fale da humanidade, e é preciso que se fale do amor, porque um não é sem o outro. é sempre no caminho de volta pra casa, quando a cidade está vazia e escura, cheia de sombras esquecidas, de sonhos bons, de desalentos, ou de lágrimas corridas no escuro, que a vontade de escrever me vem visitar. do começo ao fim da viagem noturna, que tem apenas destino, mas não início, do começo ao fim do passeio por entre luzes e orvalho, esses breves instantes, mil anos talvez, traduzem-se em uma tortura excitada, uma enxurrada de palavras, de dores, de motivos inéditos, frescos, recém-paridos, prontos para chorar ou para rir, querendo que se explorem, que se curtam, se desfrutem, e eles invadem meus olhos e tudo que vejo é transformado em poesia, uma poesia negra e de ornamentos fortes, consistentes, agudos.
penso então que não escrevo há tempos, que nunca escrevi, que talvez nunca tenha escrito nada que realmente se valha a pena ler. penso que essa aura toda das coisas-que-dóem, dos furta-cores, dos úmidos entre as palavras permanecem todos aqui, trancafiados, andando de lado a lado como um pequenino demônio engaiolado, esperando apenas por uma brecha - uma fúria repentina e enlouquecida de todos os dedos, juntos - para se fazer mostrar. e penso em quão triste é uma vida engaiolada, uma vida que não consegue atingir a plenitude, nem sequer um mísero sucesso ocasional, mas que permanece tentando, sem glória nem reconhecimento, sem nunca atingir o primeiro lugar, mas insistente como uma mula pobre, como um murro rubro em ponta de faca.
então lembro de priscilla, que me disse - sem querer e sem rodeios - que escrevo como quem come. "todo dia, o mesmo cinza". clarice disse que o que se escreve de verdade nunca está nas palavras, mas sim nas entrelinhas. revirei minhas entrelinhas de cinco ou sete anos atrás, desde o primeiro drummond, e só me vi sangrando em cores, disfarçando sob o arco íris um doer que nunca tive certeza do nome, da ocupação, do endereço. nunca o critiquei, nunca o julguei, nunca quis que não existisse. tenho para o doer uma espécie de idolatria abusada, uma idolatria que me abre espaço para que eu o explore, o force a me oferecer coisas que não tenho, que nunca teria, e que o ponha contra a parede e o seque até definhar, e então esse doer morre, sem muitos lamentos, e outro me nasce, novo, mais forte, melhorado, como as coisas da vida costumam ser quando o processo é natural, e eu o acolho de bom grado mesmo que me dilacere, que me consuma, que me mate aos poucos, porque mesmo se não der certo, meu coração é esperto, não vai parar de bater. (apóio tamanho egoísmo no conhecimento popular que diz que só se fala com sabedoria sobre o que conhecemos com propriedade, e nesse mundo não conheço de nada que não seja eu mesma, e, ainda assim, muito pouco - mas não que me envergonhe, porque não conhecer das outras coisas do mundo me impede de tomar conclusões absolutas, me proíbe de dar tudo por conhecido, me condena qualquer julgamento, e permaneço frente a tudo sempre com o olhar de criança curiosa que não entende nada que vê e que, por isso mesmo, tudo lhe parece belo).
também meu pai me disse, em ainda outra ocasião, entre uns acordes de noel e outros de cartola, que de nada adianta cercar os certos e os errados, os justos e os injustos, que de nada adianta esfaquear com olhos e palavras as coisas mutantes e escusas, porque acima de tudo, acima das palavras de clarice, o que se fala é sempre sobre o curso. e o curso é um puto: segue por onde lhe convier, e desdenha em alma de todo o resto das coisas.

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