Disseram por aí que ele arquitetou tudo. Que ele desenhou, linha por linha, as minhas asas. Que enquanto conversávamos, naquelas tardes intermináveis e bastante comuns, sobre coisas que pareciam não importar nada, ou que pareciam simples demais para que com elas fosse gasto muito tempo, ele olhava a fundo cada uma das fronteiras que construí durante minha vida; e que, enquanto observava esses lugares que eu não conhecia, ele desenhava um caminho reto, simples e limpo, o qual esperava que eu algum dia percorresse.
Disseram por ai, e pra mim também; mas enquanto as vozes deles ecoavam, eu construía coisas complicadas, tortuosas, difíceis. Não ouvi nada do que disseram.
Disseram por aí que ele sabia quem eu era. E me disseram também que eu não sabia quem ele era. Escutei, não sabia o quê. Enquanto ele segurava meus braços abertos em frente ao espelho e falava sobre o futuro, eu escutava frases ao fundo, que soavam sem sentido e abafadas pela dor que eu mesma havia criado, pelas necessidades que eu não tinha, mas que desenhei na forma de facas, que apontavam sempre para mim.
Ele me disse que sempre estaria comigo. Ele me disse, e eu escutei. Mas enquanto escutava, o que eu ouvia mesmo eram nuvens escuras, densas, que drapejavam como bandeiras fincadas em algum lugar que eu julgava conquistado. Um lugar insípido, escuro e sem vida, um lugar em que o vento na verdade se recusava a soprar. Um lugar que eu construía meticulosamente enquanto vivia.
Um dia me disseram que ele precisava ir embora. O que eu ouvi foram gritos, de dor lancinante.
Um dia ele foi embora; deixou minhas asas todas desenhadas, projetadas no papel, e me entregou o papel. Ele foi embora. Me deu as respostas, mas não me ensinou as perguntas. Me deu asas, mas não me ensinou a voar.
Nunca mais o vi. Achei que era passado, tratei de esquecê-lo. Disseram, depois de muito, que ele nunca havia ido realmente. Eu não escutei; abandonei-o. Abandonei também o papel.
Passei a cavar bem fundo, pensando em como encontrar respostas. Criei batalhas, heróis, vilões; ganhei, perdi, empatei com todos os que me ajudavam a cavar. Criei princesas que precisavam ser resgatadas, criei muros bem altos para impedir que chegassem até lá. Eu nunca parava. Pensava em como vencer a batalha. Precisava que o herói vencesse.
Enquanto isso, me diziam, sempre, todos os dias. As palavras eram simples demais para serem pensadas.
Disse o filósofo que os problemas surgem quando as coisas são retiradas de seu uso natural. Disse ainda, muito antes, que o mundo daquele homem infeliz era diferente do mundo daquele homem feliz.
Eu escutava ao fundo, mas o que ouvia eram os sons da construção. Martelos, lajotas, andaimes e sei lá mais o que. As palavras me diziam como construir um prédio bem grande, com tudo aquilo que eu queria.
Enquanto isso, continuavam dizendo coisas. Disseram que minhas preocupações não se preocupavam comigo. Disseram que eu fazia coisas por pessoas que não se lembrariam do meu tempo gasto. Disseram que eu me importava com problemas que não se importavam comigo.
Um dia, eu abandonei todos aqueles que diziam coisas. E nunca mais me disseram nada. Preferi os prédios grandes, os planos, as batalhas por vencer. Preferi aquilo que eu dizia.
Um dia o prédio não agüentou mais. Desabou, em cima de mim. A dor que senti era finalmente verdadeira.
Um dia, não agüentando a dor, que era de verdade, que eu não construí, deixei de ouvir o que eu dizia para mim mesma. Não ouvi mais nada. Matei o herói, a princesa. Derrubei os prédios, tapei os buracos. Tirei as ferramentas dos construtores, matei-os também. Acabei com a batalha. Matei todos, não sobrou ninguém. Todos sumiram.
Foi quando ele voltou. Não voltou fisicamente, não poderia mais; mas voltou. Lembrei-me então de quando disseram por aí que ele sempre estaria comigo. E acreditei.
Um dia, voltaram a me dizer coisas. Dizem-nas a todo o momento agora. E elas não precisam ser pensadas, porque só as ouço. Não há buracos a cavar. Não há grandes prédios, nem lugares mortos. Não há herói, não há batalha. Na verdade, nunca houve batalhas. Simplesmente ouço, a todo o momento ouço. Não crio. Não faço nada daquilo que meu pensamento me pede para fazer. Ele simplesmente pede; eu, porém, não acredito mais nele.
Hoje bati minha bicicleta no espelho de um carro, entortando-o. A moça de dentro do carro parou. Meu pensamento, que sempre me pede para construir coisas, projetou uma série de insultos que eu teria de ouvir, seguidos de uma tristeza e medo súbitos. Ela então abaixou a janela, e, preocupada, me perguntou se eu estava bem; disse-me para tomar cuidado na rua. Segui meu caminho, feliz por ter passado por aquele momento.
terça-feira, 2 de dezembro de 2008
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Um comentário:
lindo, Cioffi!
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