quinta-feira, 13 de maio de 2010

Pois que a vida anda corrida e a gente tudo atropelado. Mas rolou essa coisa gostosa de trazer isso aqui de volta à vida, então cá estou eu. Um texto de 2008, mas uma excitação bem atual.

Iasa Monique, 2007



- Queria entender um pouco do mundo, ele disse enquanto passava o café. A velha riu. Achava
engraçado, quase não podia entender como é que um homem naquela idade, de barba branca e cabelos ralos, de marcas fundas cravadas no rosto, poderia ainda querer alguma coisa. Quis lembrá-lo da doença, da tremedeira, dos calafrios de todas as noites, passadas com dificuldade na cama de madeira, que fazia tanto barulho estalando com o frio quanto o velho fazia quando respirava – não conseguiu. Ao invés disso, passou com pressa a seu lado, batendo atrapalhada a leiteira na travessa de pães.
- Como está sua perna? Hoje vai fazer frio.
- Queria entender só um pouquinho. Pensei já muito sobre isso. Formulei hipóteses, você sabe?
A velha olhava mas não ouvia.
- Fico pensando que tanta coincidência não pode ser só brincadeira. Sempre achei interessante a construção das pirâmides. Foram botadas lá, certinhas, equilibradas. Disseram uma vez que numa dessas pirâmides havia uma escada. E essa escada levava ao desenvolvimento espiritual.
- Hum...
- E disseram também que houve um judeu, ou egípcio, ou alguém, mas era um homem, eu sei que era um homem, que subiu essa escada.
- E o que aconteceu?
- Faz quanto tempo que você leu a Bíblia?
- Você bem sabe que leio toda noite, depois do banho.
- Pois então deve ter lido que houve uma época em que Jesus desapareceu.
A velha riu outra vez. De repente, franziu o cenho.
- Ah, não vá me dizer que você está comendo o miolo do pão outra vez! Meu Deus do céu. Olha o colesterol, eu já cansei de falar.
O velho riu com dentes de plástico.

A maioria das tardes eram passadas à mercê dos pequenos vizinhos. O velho mantinha um certo agrado: por vezes, fruta. Outras vezes, pão. Os sabiás, agradecidos, montavam ninhos cada vez mais próximos à porta, que era amiga também. Nunca havia ouvido um só grito dos velhos, não haviam batido-lhe as fechaduras, a água da chuva que corroía seu cerne era sugada com carinho pelas mãos enrugadas da velha.
A velha não amava ninguém.
Nem mesmo o velho, que falava tão doce e tão sonhador. Mas não era má com ele, muito pelo contrário. Cuidava-lhe das feridas, agendava-lhe medicamentos, preparava um bom almoço, porque quando se está velho o ápice do dia se resume a degustar uma galinha bem cozida. A velha entendia do velho; o velho entendia da vida.

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