terça-feira, 11 de maio de 2010

Diários do Festival de Jazz #2 ou Comemorando 10 anos de tendinite e disfunção social

No meu último post, falei que iria escrever mais sobre os britânicos para depois falar sobre o Jazz no Festival. Mas no que diz respeito a textos, a ordem dos fatores altera sim o produto. E justamente para que o produto não seja alguém reclamando “porra Cioffi, só sabe falar da Inglaterra agora, que saco” , eu vou mudar de assunto. Pelo menos por enquanto, porque tirar sarro de culturas diferentes da sua é sempre muito divertido.

Durante o festival de Chelt’am (vide texto anterior para explicação da grafia), tive a oportunidade de conhecer grupos de Jazz massapracaralho (vide blog da Audi para explicação do termo) justamente no ano em que completo 10 anos de música. Por isso mesmo, muita coisa me passou pela cabeça sobre a escolha que fiz quando era adolescente, e também sobre como ela, sem querer, se tornou minha escolha profissional. Nesse percurso, eu pude ver um sonho-utópico-de-todo-adolescente passar por profundas transformações e se tornar uma coisa da qual hoje eu não tenho mais orgulho – mas da qual eu não posso e nem quero me livrar.

Quando eu tinha 13 anos, escutava Nirvana e Green Day. E também Red Hot Chili Peppers. E pra mim, esse negócio de tocar guitarra (que é muito mais glamouroso que baixo ou bateria, a cozinha que me desculpe) e de ter milhares de fãs histéricos me atraía como atráia quase todo adolescente. Foi esse o impulso que me levou a estudar violão. Ter uma banda de rock famosa. Claro que na época eu não via contradição alguma no fato de eu ser mulher, brasileira e ainda por cima curitibana. Juro que não vi obstáculo algum, juro.

Como com qualquer outra coisa que eu quero muito muito fazer, mergulhei de ponta no negócio. Aprendi as coisas básicas bem rápido, e em questão de 1 ano, todos os meus colegas me pediam para levar o violão para a escola. Eles sempre cantavam comigo quando eu puxava “Have you Ever Seen the Rain”, ou “Scar Tissue”. Vendo a minha evolução, meu professor de violão – o Daniel, que tinha ido do Rock’n’Roll para o “nacionalismo” (Oswald de Andrade falando) -, foi mudando minhas percepções musicais.

Quando eu percebi que já sabia todos os acordes das músicas que eu gostava, ele me apresentou Marcos e Paulo Sérgio Valle, Tom Jobim e também Toquinho. E mais pra frente, me apresentou o violão clássico, o choro, Guinga e Garoto. Foi mais ou menos aí que eu percebi que ninguém mais cantava comigo quando eu levava o violão pra escola. A única conclusão a qual eu consegui chegar na época era a de que eu não tocava mais tão bem assim.

Foi com essa impressão que eu, com 17 anos, toquei “Duas Contas”, do Garoto, na prova do vestibular. Depois do Garoto, veio a FAP. Lá, eu aprendi o que era Jazz e me apaixonei. Lá, eu aprendi que a música que eu fazia era só para outros músicos, e que era essa, na verdade, a razão da minha falta de popularidade na escola. Um pouco antes de lá, eu havia aprendido que o máximo de dinheiro que eu ganharia na vida daria para comprar um Palio laranja usado com a tinta descascando, no maior dos luxos. E um apartamentinho no centro daqueles que você tem quando mora na cidade com os amigos pra estudar. Isso me fez decidir também pelo jornalismo. Antes que você possa gritar alguma coisa rindo bem alto, eu também descobri mais tarde que jornalismo não era exatamente uma boa opção pra encher nem a barriga nem o bolso. Só que eu havia pegado um gosto pelo negócio de verdade. Fiquei com ele também.

Ok, o que fazer então com duas opções que não enchem a barriga? Largar uma e ficar com a outra? Pensei mesmo muitas vezes em largar o violão, que só me trouxe tendinite e alguns “ah, você é músico? Mas o que faz da vida?” pelo “nossa, jornalismo, que legal, queria ter feito também”. Só que eu não consegui. Aí veio a decisão perfeita: pegaria toda a teoria da comunicação que havia estudado, juntaria ela à música, e viraria acadêmica. Enquanto isso, teria todo o tempo do mundo para estudar meu instrumento.

“Ok Cioffi, e o que o Festival tem a ver com esse bando de coisa, vê se escreve direito”. Bem, além de ter pensado nessa trajetória toda enquanto via os músicos tocando, constatei que, mesmo meu futuro não tendo nada de bem sucedido nos termos da indústria musical – como eu, de um jeito ou de outro, sempre soube – , ele pode ser sim alguma coisa de que eu goste.

Veja bem: tínhamos Jamie Cullum e a orquestra da BBC de um lado, o lado dos famosos. Do outro lado, o dos marginais, tínhamos Farmers Market, Sid Peacock, Polar Bear. Ou ainda, uma lenda – e nesse caso, “lenda” pode coexistir harmoniosamente com “marginal” – igual o John Scofield. Eu não preciso dizer que fiquei com os marginais. Um bando de coisa que me fez quase chorar, ou rir um riso extasiado.

A orquestra da BBC, monumental, com seus arranjos bem penteados de músicas do Sinatra, me fez querer dormir. Jamie Cullum só me chamou a atenção quando me perguntou porque é que as cadeiras da frente não estavam sendo utilizadas. E pra completar o meu sentimento de marginalidade, quanto mais eu estudo a indústria musical no meu mestrado, mais eu constato cientificamente e dou bases teóricas para o fato de que serei marginal pela vida toda.

Eu não tenho nenhum orgulho disso, pra deixar bem claro. Não acho que eu seja melhor que todos os outros porque estudo esse tipo de música. Na verdade, eu tenho um certo receio e uma certa vergonha disso. Sei que eu nunca terei sucesso além do limitado “sucesso acadêmico” que eu possa talvez, um dia, conseguir. Sei que nunca possuirei o poder cultural que os músicos contratados pela indústria musical conseguem.

Mas todos os meus 10 anos de música se justificam quando eu lembro da cena: Sid Peacock no palco, bonachão, com um sotaque de lugar nenhum no seu inglês, fazendo piadas estranhas ao explicar suas músicas. Quando sua orquestra começa a tocar, o teatro pequeno simplesmente pára, pelo menos para mim. Arranjos fortes, quase atonais, contrapontos muito bem feitos entre os naipes. Algo que arranca uma parte do seu peito e a joga pra bem longe. Na minha cabeça, a certeza de que se eu morrer sem poder fazer o que ele fez com aquela orquestra, não morrerei satisfeita.

Pra comemorar essa uma década de tendinite, e me aproximar dos meus ideais Peacock que surgiram no Festival, fiz uma promessa. Ao completar 24 anos, estarei tocando improvisos legais na guitarra e terei escrito pelo menos 4 coisas minhas. Façam o favor de me cobrar isso ano que vem.

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