domingo, 19 de outubro de 2008

maldito II - O Padre


Martine Franck, France. 1994.

Acaso não sabeis que os injustos não hão de possuir o Reino de Deus?
Não vos enganeis: nem os impuros, nem os idólatras, nem os adúlteros,
nem os efeminados, nem os devassos, nem os ladrões, nem os avarentos,
nem os bêbados, nem os difamadores,
nem os assaltantes hão de possuir o Reino de Deus.


1 Coríntios 6:9

Mas por que razão gritam tão altos estes sinos? Não parece-me outra coisa que não a insistente zombaria àquilo que reprimo abaixo da batina. A meu mumúrio, que ninguém ouça. Nem mesmo Deus, se for possível.

Hoje aniversariamos, meu Pai; eu e esse meu respirar pesado, aliado fiel desde a primeira missa ministrada em Tua voz. A velhice de nossa comemoração guardo só a Ti e incapaz seria minha garganta de pronunciá-la em alto; esquivo-me de semear qualquer desconfiança quanto a botar em contas os anos de minha dedicação. Sei também que a isso nada tem a ver o Teu descontentamento, e à disposição deixo meus ouvidos para o que julgares necessário para a minha Rendição. Sim, meu Senhor, que me sinto digno de Teu perdão, embora há muito tempo tenha deixado de sentir o gosto do Teu sagrado corpo; o aroma do Teu sagrado sangue. Sim, meu Senhor, que tenho consciência do tamanho do tumor que se alojou em meu peito e do fracasso podre e pagão do qual sofri por ter deixá-lo em carne viva e, nem assim, tê-lo arrancado. De lá para cá, passaram-se mil ave-marias; vinte cinco mil pai-nossos; e não sei contar por quantas vezes senti o coração parar sob o peso branco de Seus olhares. Eis que revirei o Livro outras tantas vezes, como não fazia desde os tempos de seminário — e, meu Pai, por onde devo começar? Uma vida inteira de estudos não adiantou-me de nada quando o pecado me veio bater à porta e profanou em inundância todas as esquinas de minha vida. Que, nas mesmas páginas onde encontrei perdão e aconchego, achei também ameaças e terminâncias. Das mesmas palavras extraí determinações impiedosas e calmarias à correnteza do coração. Ó, meu Pai, que desta última vez deixei o Livro não só com lágrimas, mas com outro sentimento, um sentimento negro no nome mas de uma sinceridade tão intensa que custo a não vê-lo luminoso, uma coisa que me toma, por vezes, quando vejo o quanto somos reprimidos de sermos o que somos, o quanto sofremos na busca eterna de nos tornarmos aquilo que, na verdade, não nascemos pra ser, e que muito raramente o desejamos de verdade; que na verdade nada mais queremos a não ser poder gozar dos frutos que a vida nos oferece de mão amiga, sem que precisemos pedir — mas não podemos, ó Pai, não podemos, porque temos olhos em todos os lugares que nos perseguem e buscam e acorrentam e por vezes dão-nos chibatadas, e mostram-no alguma vivência passada de alguém que não reconhecemos como nossos e nem ao menos entendemos qual relação têm eles, indivíduos longínquos e tão indiscutivelmente egoístas como nós, e por quê temos de levar nossas atitudes com um pesar acumulado pelo qual não fomos nunca responsáveis, mas, se não o fizermos, estamos condenados a uma vida ainda pior do que esta, em outro lugar que não nos permitem nem ao menos conhecer as condições, porque tudo nessa vida é assim, um passo no escuro, e nós que estejamos prontos para tudo e qualquer coisa e nada mais digno do que nos resignarmos e agradecermos, não é, meu Pai, pela oportunidade de atravessar mais um dia de mágoas e tristezas e flechas atiradas contra o peito; somos gratos, sim Senhor, eu e os montes de pobres almas que vêm até a Sua morada pedir perdão por uma regalia a mais, por um desejo qualquer incontrolável que tomou conta de um coração outrora fiel, pela tristeza que nos levou a desejar o mal, pelo amor àquilo a que não se tem direito, pelo desejo carnal, pela revolta com essas grades postas por todos os lados, por ter que agüentarmos calados todo tipo de injúria e infelicidade só pra estarmos na fila daqueles que talvez, algum dia, tenham as almas aquietadas em um reino celeste que ninguém nunca provou existir! * ............ Vês, meu Pai... vês onde me encontro, onde é que me botaste, meu Pai, perdoa-me, por que me fazer passar por tanto? Eu, que sempre estive aqui a seu lado, agora derramando sobre ti tanta heresia, mesmo sabendo que por mais inquieto que esteja meu coração é Tu que sabes dos valores e da fé e que é nela que preciso depositar todo o meu ser. Quanta vergonha, meu Pai, quanta vergonha, ao sabão com toda a minha boca e toda a minha língua, que Teus sagrados ouvidos não hão de sofrer novamente a mesma imprudência. Eu, que aniversario hoje uma carreira toda de dedicação, ó, Senhor, perdoai, perdoai. Haverás de punir-me, não é? Já o prevejo e aqui me comprometo a jamais profanar uma só palavra a pedir alívio do que julgarás ser meu castigo. Aceitarei, Senhor, de comum acordo, por uma redenção que espero conquistar novamente, assim que purificar meu coração. Ó, Pai, que já o sinto purificando... ó, Pai, como é grande o Teu poder, já sinto Sua presença a acalmar-me a inquietude. Perdoai, Pai. Perdoai, que eu também hei de garantir uma nuvem confortável no reino dos céus.

Um comentário:

Mari Cioffi disse...

Bom pra caralho esse texto, guria. Sério, muito bom.