Quando nasci, veio um anjo torto e me disse: não disse nada, e se dissesse eu provavelmente não entenderia mesmo. Só sei que nasci, que um anjo me viu e que desde então tudo que faço é olhar.
Na casa da vó, quando ela ainda morava na pequeníssima e sereníssima Oriente, eu sumia por horas. Ficava a observar os pequenos detalhes daquela decoração kitsch que é coisa tão característica de avós. Havia uma caixinha de música que, meu Deus, nunca mais encontrei algo tão fascinante. Tinha uma flor no meio de um monte de água, e brilhava em verde e azul. E a bailarina rodopiaba, presa por um ímã. Eu apagava a luz e ficava a mirar. E também as flores miudinhas vermelhas, as panelas amassadas, o cachorro velho, os sacos de amendoim do vô, os puxadores de cortina que eram um pompom espalhafatoso, os contornos do piso da área, a flor que minha vó chamava de língua-de-gato e sempre me dizia que apanhava da sua mãe com ela porque ardia, a campanhia antiga cor bege, aliás tudo era bege, o sofá era bege, o fim de tarde era bege, às vezes laranja, só os shorts da tia que eram roxos e de cotton, a cortina de rolinhos de madeira que separava a cozinha da sala e era uma diversão ficar passando pelo meio, o corredor que não tinha nada, o medo de dormir lá à noite, as histórias de fantasma da minha vó, que sempre disse que a gente tem mais é que ter medo dos vivos e não dos mortos, o vô sempre quieto, o vô sempre lendo, o vô e a vó vendo jogo do Palmeiras, o vô me ensinando a andar de bicicleta, o vô que me dava dinheiro e eu ficava com peso na consciência porque eu devia tê-lo beijado mais, a cor da noite quando a gente voltava pra casa, a estrada era escura e as coisas corriam tão rápido, eu sempre via a morte ali no meio, correndo do lado do carro, pensava baixinho uma oração para ela não levar meu avós, ia rezando, olhava a morte por trás de cada árvore.
(porque eu vi um filme uma vez em que a morte queria entrar para levar um filho, e os pais fecharam todas as portas e janelas da casa, e a morte era uma luz verde e azul, e eu não lembro se ela entrava)
(e também tem uma história que meu pai me contou uma vez, quando ele lia pra mim antes de dormir - ele fez isso até eu ser bem grandinha, e eram sempre contos do Malba Tahan - e se chamava Minha vida querida. era sobre um homem que recebe a visita da morte, que lhe anuncia: "vim levar sua mulher". ele se desespera, pois ela é o amor de sua vida, e diz: "não faça isso! vamos negociar". eles, o homem e a morte, discutem então uma maneira de deixar a mulher viver. depois de uma longa discussão, o homem descobre que tem ainda mais 40 anos de vida, então propõe que, desses 40, 20 sejam dados a mulher. assim, os dois poderão viver juntos por mais vinte anos. a morte aceita. passa a noite. no dia seguinte o homem acorda e vê que sua mulher está morta. desesperado, clama pela injustiça. a morte ouve o chamado e explica: "esta noite seu filho ficou doente e esteve prestes a morrer. quando vim buscá-lo, sua mulher me disse: 'dê todo o meu tempo de vida a meu filho'. você demorou horas para dar metade de sua vida à sua mulher, mas ela deu sua vida inteira ao filho sem para pensar nem por um segundo". o homem se envergonhou)
Aos oito anos, a maior diversão era deitar no chão do jardim da escolinha e ficar olhando as outras pessoas por entre as folhas. Tinha um buraquinho certeiro, do tamanho dos meus cotovelos apoiados no chão. Como meu pai sempre atrasava muito para ir me buscar, eu me escondia ali e ficava observando os outros alunos saindo da aula, arrumando a mochila, dando um beijo na mãe ou na tia da kombi, indo embora. Me pergunto o que as outras pessoas pensavam ao me ver ali, de barriga na terra, pés pra fora, só observando a vida que ia embora.
Queria voltar a olhar assim. Queria, pelo menos, ter beijado mais meu avô.
abri meu coração, isso é tudo que sou, chorei.
quarta-feira, 15 de outubro de 2008
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2 comentários:
vem cá, esse filme da luz verde que rouba a vida dos filhos não é "moisés - o príncipe do egito"? parece.
mas hein, puta texto.
audiiii, quero te dar um abraço agora!!
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