quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Uma melodia de sangue


E, havendo aberto o quarto selo, ouvi a voz do quarto animal, que dizia: Vem, e vê. E olhei, e eis um cavalo amarelo, e o que estava assentado sobre ele tinha por nome Morte; e o inferno o seguia de perto; e foi-lhes dado poder para matar a quarta parte do mundo, com espada, e com fome, e com peste, e com as feras da terra.
Apocalipse, 6;7-8


O violão soava como um lamento, um murmúrio dolorido de desassossego. Pelo ar parado, o som perambulava, triste, lânguido, fraco de vontade. Dona Lúcia cruzou a mercearia arrastando os chinelos, e serviu mais uma rodada de cachaça aos que jogavam caxeta nos fundos, ocultos na frouxidão da penumbra. Os sinos da igreja a repicar anunciavam as seis horas, e ela pensou que em breve o lugar estaria cheio, os homens que encerravam o trabalho na olaria ao lado acomodariam-se nas mesas ou no balcão e beberiam cachaça e cerveja, à espera de que ambas lhes viajassem pelos músculos e trouxessem algum alento ao corpo fatigado. Estacou em frente ao velho, para pedir se ele desejava algo. Por de trás do bigode grisalho alourado pelo fumo, ele sorriu, revelando um dente de ouro e recusando a garrafa que Dona Lúcia trazia nas mãos. Indicou o copo que há uma hora jazia a seu lado, ainda pela metade. Então, fez apenas baixar a cabeça e voltar a cutucar o violão, as cordas a vibrar numa melancolia torturante.
No fim de tarde melífluo, o tempo tornara-se uma dimensão grevista, e recusava sua obrigação primeira, o ofício de simplesmente passar. Nem ao menos as copas das árvores estavam dispostas a incomodar-se; na falta de brisa, eram frondosas estátuas sob o sol que agora mirava o ocaso, e lançavam compridas sombras que cobriam de um lado a outro a rua de chão batido. Dona Lúcia apoiou os cotovelos sobre o balcão e ficou a ouvir o velho. A melancolia do violão era tanta que ela sentiu por ele um afeto triste. Dona Lúcia reconhecia, embora não tivesse consciência disso, a dignidade da tristeza, que é diferente da aflição, posto que não reivindica amparo. A tristeza, sim, reconhecia seu valor, o valor desse incurável amor por algo que já não nos pode dispensar o mesmo apego; a tristeza perpétua, resignada, que não exige coisa alguma, apenas não ser molestada – sim, ela era digna. Um modesto sorriso tangeu-lhe o rosto. Reparou, então, que a fronte do violão estava cravejada de bijuterias a formar um nome – Joaquim.
“Joaquim?”, disse a meia-voz, como que a perguntar àquele forasteiro se era assim que deveria chamá-lo.
O velho entendeu tudo de súbito, mas não deu-se ao trabalho de levantar os olhos para responder. Com o rosto escondido pela aba do chapéu, falou com a voz calma e rouca, uma voz sem pressa ou direção, como se estivesse na verdade a falar para si mesmo:
“Não... era de meu filho...”
Era como se quem estivesse a falar fosse o violão. A voz mansa e triste entrou cautelosa pelos ouvidos de Dona Lúcia e, parecendo já conhecer o caminho, foi direto sussurrar-lhe ao coração. Era o falar terno de uma assombração que não metia medo.
“E o que é feito dele?”, tornou a querer saber dona Lúcia.
“Morreu de tiro... atiraram nele.”
Não havia raiva ou rancor – apenas uma tristeza árida. Dona Lúcia pensou entender: o velho viera à procura de paz, fugido do passado; o passado – poderia ter pensado ela – esse tempo que se recusa a aceitar a idade avançada e, portanto, faz-se sempre presente.
“Nunca vi o senhor por estas bandas. Foi por isso que veio pra cá?”
“Sim. Cheguei ontem”, respondeu o velho, o violão lamentoso apoiado sobre as pernas cruzadas.
“Deve ser duro, perder um filho assim”, assentiu dona Lúcia. “Faz tempo que sucedeu?”
“Um ano.”
“A gente se acostuma. Eu também perdi uma filha, há quatro anos. Não foi de tiro, mas perdi. Os vivos precisam continuar levando.”
O velho não respondeu, e dona Lúcia achou por bem deixá-lo em paz com seu pranto seco, um pranto cujas lágrimas eram notas tristes, comedidas, expelidas por um violão. Saiu do balcão e foi atender aos trabalhadores que agora já começavam a encher a mercearia. Mais mesas de jogo passavam a se formar. Os homens pareciam taciturnos, traziam o sobrolho carregado por um estranho pressentimento, como se aquela melodia de desespero medido que o velho tocava estivesse a trazer algo, um mau agouro, uma desgraça da qual lhes seria impossível escapar. Maneca, um jovem robusto de cabelos de fogo cortados à moda militar e olhos azuis severos, irritou-se:
“Ei, velho, é sexta-feira! Há alguma maneira de fazê-lo parar?”
O velho nada disse. Apenas levantou-se calmamente, deixou de lado o violão e começou a dirigir-se para mesa de Maneca, o meio copo de cachaça em uma das mãos, passos lentos mas jamais vacilantes. Era realmente velho, e a camisa aberta até a metade mostrava um peito ossudo. No rosto, as rugas e marcas do tempo haviam se acentuado ao ponto de se transformarem em vincos profundos, pregas. Uma papada seca pendia-lhe da garganta, como se não pertencesse a ele, como se tivesse sido fundida à goela. Sim, era realmente velho, franzino, mas o andar decidido e resoluto mostrava que havia algo mais naquele pequeno feixe de ossos, músculos e nervos.
“Há um lugar para mim na caxeta de vocês?”, perguntou ele, ao alcançar a mesa.
“Quer jogar com a gente, senhor?”, respondeu perguntando, cortesmente, um homem moreno, forte como um touro.
“Bem, creio que um jogador a mais não lhes fará mal, fará?”, rebateu o velho.
“Aqui, nós jogamos a sério, vovô”, advertiu Maneca.
“Compreendo”, disse o velho. “Não tencionava brincar mesmo.” Puxou uma cadeira e acomodou-se. Bebeu um gole da cachaça, esfregou as mãos e ficou à espera das cartas.
O lusco-fusco instaurava-se. Fora, conforme a escuridão descia, as janelas de casas modestas passavam a iluminar-se dos dois lados da estrada. A luz fraca e cambiante dos postes de iluminação também surgia, tímida, constrangida, quase a pedir desculpas por estar ali e poder fazer tão pouco. O silêncio agora era quebrado pelos pardais, que em alvoroço começavam a instalar-se para pernoitar nas árvores. Dona Lúcia percorreu novamente as mesas da mercearia, servindo mais cachaça. O velho aceitou, mas ao contrário dos outros, que engoliram tudo de um trago, passou a bebericar o copo.
“Acho que estou velho demais para vocês”, comentou, rindo-se.
A caxeta começou, e o velho mostrou-se um jogador desgraçado; não tinha nem mesmo uma mísera idéia do que fazia. Os homens, no entanto, pilharam-no com cautela. Não por filantropia, é sabido, mas por acreditarem que aquele forasteiro poderia render-lhes mais se pudessem mantê-lo disposto para futuros jogos.
“O senhor vem da onde?”, quis saber a certa altura Maneca, que despontava como líder do grupo.
“Mato Grosso”, disse o velho.
“Lá é terra de dinheiro. Terra que tá começando agora. Veio fazer o que no interior do Paraná, neste fim-de-mundo? Olha que esse lugar aqui não dá mais nada, hein?”
“Estou velho demais para dinheiro”, explicou o velho. “Na minha idade... vim para um lugar onde possa morrer em paz.”
“De fato”, disse um homem louro e precocemente calvo, um alemão de pele avermelhada. “E se há um lugar onde há paz para se morrer, é aqui”. Riu do próprio comentário, no que foi acompanhado por alguns, mas não pelo velho.
“Mas o que é que causa tanto barulho em Mato Grosso?”, perguntou Maneca, jogando o dinheiro daquela rodada sobre a mesa.
O velho apertou um cigarro de palha entre os dentes e acompanhou-o, também jogando na mesa uma amassada e encardida nota de dinheiro. Resmungou:
“Aquilo lá é terra de malvadeza, terra de pistoleiro. Vira-e-mexe matam um.”
Maneca concordou com um leve aceno de cabeça. Pareceu perturbado. O lamento do violão dera lugar às conversas nas mesas de jogo, mas a melodia ainda parecia estar lá, camuflada, fazendo das tripas coração para conter um gemido.
“Não sei como pode, um lugar onde se mata um ser vivente assim, sem mais nem menos”, continuou o velho. “Aquilo lá é terra de gente sem coração.”
Acenou para o balcão e pediu mais uma dose de cachaça. O alemão, que estava à sua frente, fez um aceno de cabeça, indicando que havia 'batido'.
“E o que o senhor faz? Digo, como pretende viver por aqui? Na sua idade, não acho que consiga trabalho na olaria...”
Era Maneca, subitamente muito interessado por aquele homem – sessenta? Talvez setenta anos, calculou.
“Não sei”, respondeu o velho. “Mas não vai ser de baralho.” Sorriu. “Nem por muito tempo.”
Levantou-se da mesa, impassível diante das perdas; apanhou o violão e foi ao balcão. A luz mortiça da mercearia agora engalfinhava-se na porta com a escuridão da noite, defendendo sua jurisdição – aquela, porém, parecia ser uma batalha há muito perdida. O violão recomeçou seu murmúrio lamentoso.
A mesa de jogo de Maneca se desfez. Os homens chegaram junto ao balcão, próximos ao velho, como se a melancolia daquela canção tivesse algo de mesmerizante, de insuportavelmente atraente.
“Sabe, o senhor é um homem bem tristonho”, comentou Maneca, um sorriso modesto contorcendo a boca de lábios grossos e incrivelmente vermelhos.
“Você também seria, se tivesse matado alguém”, assentiu o velho.
“Você já matou um homem, velho?”, perguntou Maneca.
“Não.”
Maneca franziu o sobrolho, numa expressão de estranhamento à resposta - conversa mais sem pé nem cabeça.
“De qualquer forma, acredite, eu sei como é”, disse por fim.
“Eu acredito em você”, respondeu o velho.
Pela primeira vez na noite, ergueu o rosto completamente e encarou Maneca. Antes que o ruivo forte pudesse ter certeza de a quem pertencia aquela cara levemente familiar, os olhos muito verdes do velho flamejaram. Num gesto rápido, ele levou uma mão às costas e cravou na garganta do ruivo uma grande faca disforme. O ruivo cambaleou, soltou um ruído de desespero, gorgolejou afogando-se no próprio sangue. A mercearia tinha agora poucas pessoas, que demoraram algum tempo para entender o sucedido; dona Lúcia soltou um grito de horror. Maneca caiu junto ao balcão, os olhos vidrados de terror fitando o rosto daquele que o degolara. O velho mostrou àqueles olhos de vidro o violão onde estava inscrito o nome do filho.
“Joaquim era um bom filho”, arrematou.
Ninguém jamais soube seu nome. Viveu ainda por dois ou três minutos, o tempo que os companheiros de Maneca precisaram para extingui-lo a socos.

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