-- A gente bem que podia estar em um daqueles rios americanos, que têm a água parada e um monte de graminhas crescendo na borda, e a gente ia ter que navegar em um daqueles barcos com ventiladores gigantes, sabe, aqueles que são todos abertos e só tem aquela grande hélice atrás que serve como motor. Sabe? Aqueles filmes americanos que passam na sessão da tarde, que você nem sabe se eles são mesmo dos EUA ou do Canadá ou da Inglaterra porque são todos dublados. Mas não são daqui, porque as crianças são todas loiras e vermelhas, o pai é heróico e a mãe morreu, então a família conhece uma mulher super legal e descolada, que provavelmente é a guia turística. Ela é bonita e bem boba, está solteira e acaba virando a mãe das crianças. Mas então, a gente tá no barco, e tá calor. A gente limpa o suor da testa com lenços de linho bordado, usamos calças cáqui e camisetas de algodão. Também tem que ter um chapéu de palha, não de vaqueiro, tem que ser daqueles estilosos, com uma aba grande na frente e um lencinho amarrado no meio.
-- ...
-- Você deve saber do que eu tô falando. A gente tá lá. E vai ter um jacaré. Um crocodile, bem americano. Vem com a bocona aberta assim, porque isso sempre acontece nos filmes americanos. Tipo um crocodilo dundie. É, não aquele cara, mas um bichão mesmo. Ele come os animaizinhos que vão tomar água na borda. E então você pode me salvar. Se você tivesse fora do barco, viria nadando pela correnteza, lutando com outros jacarés. Eu ia falar que você viria em um cipó, mas daí ficaria muito fora da realidade... Não, você tem que estar dentro do barco, e nos salvar só no último minuto.
-- ...
-- Eu não seria a mulher legal e solteira, eu nem sou assim, sou bem mais complexa, mais complexada até. Acho que eu nem ia estar no filme. Mas tô contando a história, então me deixa. Você me salvaria?
-- ...
-- Tá, eu sei que não. Eu sei. Eu sei. Eu sei. Eu sei? Eu sei lá. Bem que podia. Pô, não te custa nada. Já te deixei como o pai herói. Você nem é herói. Tá mais é pra um desses caras normais que ficam por aí, se ferrando o dia inteiro. Não sei porque te acho herói. Nem me salvar você salvaria.
-- ...
-- E você sabe que não precisa gostar de mim pra fazer um ato heróico. Seria bem mais bonito se fosse ao contrário: você nem gosta de mim, me despreza até, mas vai lá e não me deixa morrer. Heróis de verdade são assim. Porque é muito fácil não deixar morrer aquelas pessoas que a gente ama.
-- ...
-- Você podia gostar de mim. Podia, não podia? Pô, o que custa? Pelo menos enquanto a gente tá navegando pelo Mississipi. Ou sei lá que outros rios têm nos Estados Unidos, no Canadá ou na Inglaterra. E que outros rios são infestados de crocodilos? Não pode ser no Nilo, porque eu nunca vi um filme egípcio. Cleópatra não conta. Moisés é de lá, né?
-- ...
-- Por que você não gosta de mim?! Você tem que gostar de mim! E isso não depende de rios, jacarés, chapéus de palha e nem de suor secado com panos de linho.
-- ...
-- Fala pelo menos alguma coisa.
-- Oi? Você está falando comigo?
quarta-feira, 29 de outubro de 2008
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