Há dois meses, recebi uns anúncios sobre vagas para trabalhar em um festival de Jazz em Cheltenham (que se pronuncia Chelt’am, e eu já reclamei para todos os ingleses que podia do grande desperdício de letras que é esse nome). O trabalho, apesar de voluntário, envolvia Jazz e festivais legais tipo os de Antonina, nos quais você conhece um monte de gente interessada nas mesmas coisas que você. Eu passei um bom tempo escrevendo meu CV e uma carta, que foram bastante convincentes e me garantiram uma entrevista por telefone. Também nela fui convincente – já havia antecipado todas as perguntas que me seriam feitas e escrevido as respostas antes de receber a ligação.
Esse processo árduo de inscrição para um trabalho voluntário me fez acreditar que esse festival devia ser bem importante mesmo. Herbie Hancock e Chick Corea já tocaram algumas vezes por lá, então sim, seria no mínimo interessante para mim. Eu escuto esses caras desde que o processo natural de jazzificação – que acontece com todo músico que estuda veementemente música popular – começou em mim, há aproximadamente 4 anos. Nessa época eu tocava standards na casa do Diego, com meu clarinete desafinado e meus improvisos que eu fazia usando no máximo duas notas por compasso, sem saber bem em que acorde estava. Essa sessão foi carinhosamente apelidada de Jazzeeeera (em homenagem ao querido sotaque catarinense do Diego) e durou até eles ficarem bons e eu empacar no caminho por ter começado a odiar o esforço respiratório que o clarinete me impunha. Enfim, a Jazzeeeera foi um passo importante no meu estudo, e o Jazz me acompanhará em tudo que farei nos próximos anos.
Mas voltando para o festival: chegando em Chelt’am (eu me oponho fervorosamente a escrever essas 3 letras que acabam com o entendimento dos fonemas do inglês que um cidadão normal tem), me deparei com um time literalmente completamente britânico. Na lista de nomes de pessoas trabalhando para o festival, o meu era o único que não comia salsichas com ovo frito no café da manhã, nem possuía um dispositivo contra incêndio que dispara pelo menos 3 vezes por mês e faz você sair de pijama de casa às 7 da manhã.
Por causa disso, a experiência que eu tive pode ser dividida em dois pontos principais: a música que eu ouvi, e a socialização intensa com britânicos que eu tive. Aqui em Liverpool, meus amigos são de várias partes da Europa, e quando a gente sai todo mundo junto tem no máximo 3 pessoas britânicas, e só. Socializar com um grupo predominantemente inglês era algo que eu não tinha feito ainda, e posso dizer que tenho várias coisas pra contar depois disso. Fiz constataçoes que até existiam antes, mas que se tornaram óbvias depois da semana de trabalho.
Vou então começar com essa experiência britânica, pra depois, no diário número 2 – ou 3, dependendo de quanta coisa sobre eles eu tenho pra dizer – falar sobre a música. Muito bem, vamos começar com as diferenças espaciais. Eu fui para uma cidade a duas horas e meia na direçao sul de Liverpool. Para um brasileiro, essa distância seria tipo ir pra praia no fim de semana, ou ir lá pegar um negócio muito importante que você esqueceu em casa no Sítio Cercado e depois voltar pro trabalho no centro. Mas aqui na Inglaterra, é uma distância enorme. As pessoas não só têm sotaques diferentes por causa dela, como também têm mais ou menos dinheiro e também cores de bochechas diferentes. O Norte é o operário caipira levemente rosa que parece um presuntinho, e o sul é o rico Sir Peter Gaylord com sotaque da BBC (que até parece um presuntinho também, mas um pouco mais apresentável). O Norte vota para o partido operário e o Sul para o conservador. (Só para constar, a pessoa com quem mais bebi e falei merda foi um cara do Norte que era zuado constantemente por todos os outros, que eram do Sul. Talvez tenha feito isso para inconscientemente contrariar minhas origens de classe média polida curitibana. Mas isso é uma coisa que eu acho que faço toda hora, independente de estar na Inglaterra ou não).
Outra britanicidade: informação. Dizer para as pessoas como chegar a algum lugar, para um inglês, é um ritual sério que envolve muitos estágios. A partir do momento em que você pergunta para um deles, “can you tell me the way to…”, você constatará as seguintes fases: 1) O posicionamento. Haverá um período de silêncio no qual o inglês virará de frente para a direção na qual você deverá caminhar. 2) O enrijecimento do corpo. O inglês irá adquirir uma postura firme e irá alinhar o braço solidamente com o seu caminho. 3) O uso de vocabulário próprio para informações. Nesse ponto você irá constatar quantas palavras a mais existem no inglês para ajudar alguém a chegar em algum lugar. 4) A confirmação. Ele olhará para você para ter a certeza de que deu uma informação precisa, e esperará um sorriso e um “thank you very much” acolhedor. Se você não fizer isso, ele ficará puto.
Falando em sorrisos e em coisas acolhedoras, ingleses sorriem muito, ao contrário do que se pensa. É como se eles substituissem muitas palavras por sorrisos. Não sei da veracidade deles, mas toda vez em que passava por alguém do time para o qual estava trabalhando, rolava um sorriso. Toda vez em que eles me pediam algo, e eu dizia “sure”, com uma cara feliz, eles respondiam com um “thank you” que mais parecia que estavam cantando (eu até cheguei a pensar numa melodia imitando esse thank you, mas não poderei mostrar agora para vocês por isso ser um texto e não uma partitura – embora alguns chatos semióticos possam ficar enchendo o saco por horas para provar que uma partitura é um texto). A impressão que ficou na minha cabeça é a de que a Inglaterra é uma grande mãe e um grande pai também, ambos gordos e felizes, que impõem regras, mas que fazem isso sorrindo bastante. E se você sorrir e fizer o que for pedido, você irá receber um abraço acolhedor, mas não literal, em retorno.
Estou chegando ao fim do diário 1 constatando que deverei escrever mais sobre eles no próximo diário. Fico por aqui com esse texto, para em seguida escrever mais sobre essa grande mãe gorda e rosada que é a Inglaterra.
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